Pedaladas fiscais ensejam impeachment?

Sumário: 1 Introdução. 2 O princípio da unidade de tesouraria. 3 O não repasse dos recursos financeiros correspondentes às verbas consignadas nas dotações orçamentárias. 4 Crime de responsabilidade e Lei de Responsabilidade Fiscal. 5 Crime de responsabilidade segundo a CF e Lei nº 1.079/50. 6 Abertura de créditos extraordinários. 7 Leis orçamentárias nunca forma levadas a sério. 8 conjuntura política anormal. 9 Conclusão.

1 Introdução

Ultimamente o noticiário político vem dando grande destaque às chamadas pedaladas fiscais que dariam o embasamento jurídico para deflagrar o processo de impeachment contra a Presidente da República. Não se sabe ao certo quem plantou essa ideia na mídia, mas, poucos sabem o que elas significam e ninguém se interessa em obter o real sentido dessa expressão popular utilizada para agitar a bandeira do impeachment.

É hora de procurar explicar tecnicamente o que representa essa expressão, e analisar o cabimento ou não do impeachment com fundamento nessas pedaladas.

Certo ou errado, deu-se o nome de pedalada fiscal à omissão do Tesouro no repasse de recursos financeiros devidos às instituições financeiras públicas para pagamento das despesas decorrentes da implementação de programas sociais, fixados na Lei Orçamentária Anual – LOA.

2 O princípio da unidade de tesouraria

O Tesouro, gerido pelo governo, tem a responsabilidade de repassar a órgãos e entidades contempladas na LOA os recursos financeiros correspondentes às verbas aí fixadas. Isso porque o princípio da unidade da tesouraria, que está expresso no art. 56 da Lei nº 4.320/64 e recepcionado pelo art. 164, § 3º da CF, não permite que o dinheiro público fique fora do Tesouro. As verbas consignadas ao Judiciário, por exemplo, tem seus recursos financeiros transferidos mensalmente em forma de duodécimos até o dia 20 de cada mês, na forma da lei, como determina o art. 168 da CF. Aqui não há possibilidade de pedaladas por força de expressa determinação constitucional do repasse de recursos financeiros correspondentes na quantidade e no tempo devidos, o que não acontece com as demais verbas. Presume-se que as verbas pertencentes aos demais órgãos ou entidades públicas devam ser repassadas à medida de suas necessidades, observados os seus limites e os prazos de vencimentos das obrigações vinculadas às despesas fixadas no orçamento, mas, não há nenhuma determinação constitucional nesse sentido.

3 O não repasse dos recursos financeiros correspondentes às verbas consignadas nas dotações orçamentárias

No caso concreto apreciado pelo Tribunal de Contas da União – TCU – mais de 40 bilhões não teriam sido repassados às instituições financeiras públicas para atender às despesas decorrentes da execução de programas de inclusão social.

De fato, isso deve ter acontecido porque a Caixa Econômica Federal, como é sabido, vinha utilizando os recursos do FGTS para prover as despesas com o programa “Minha Casa Minha Vida”, por exemplo. E as pedaladas fiscais ainda não devem ter cessado, porque é o próprio órgão gestor do FGTS, o Conselho Curador, que está anunciando que a CEF receberá em 2015 um recurso financeiro da ordem de 3,3 bilhões, e no ano de 2016, recursos da ordem de 4,3 bilhões por conta dos fabulosos lucros obtidos pelo FGTS, com a especulação de recursos dos depositantes da caderneta de poupança. Abro um parênteses para dizer que o FGTS está nadando em dinheiro, mas, continua confiscando o adicional de 10% incidente sobre a multa por despedida injusta do trabalhador, que foi criado para vigorar temporariamente até a CEF conseguir pagar as condenações judiciais decorrentes de expurgos de índices nas correções das cadernetas de poupança por diferentes planos econômicos. Isso porque, a Presidente vetou a projeto legislativo aprovado pelo Congresso Nacional que extinguia aquele adicional por ter alcançado plenamente o objetivo que ensejou a sua criação, transformando o adicional de multa em um imposto novo. O que é provisório transformou-se em definitivo por conta dos desvios de recursos a exemplo da CPMF cuja recriação se pretende novamente, sob o indefectível manto da provisoriedade.

Mas, retornando à matéria, o que o impeachment, tão ventilado na mídia, tem a ver com essas pedaladas, assim entendidas as omissões nos repasses de recursos financeiros a bancos oficiais na forma da lei orçamentária em curso? Nada, absolutamente nada!

4 Crime de responsabilidade e Lei de Responsabilidade Fiscal

Alguns dos defensores da tese do impeachment, com base na violação das normas da LRF, fizeram o seguinte raciocínio: reter recursos destinados a bancos oficiais é o mesmo que tomar de empréstimo (linguagem comum) recursos daquelas instituições bancárias, isto é, equivale a efetuar uma operação de crédito, incidindo na afronta ao art. 36 da Lei de Responsabilidade Fiscal – LRF – in verbis:

“Art. 36. É proibida a operação de crédito entre uma instituição financeira estatal e o ente da Federação que a controle, na qualidade de beneficiário do empréstimo”.

Conforme comentamos “esse dispositivo vai de encontro aos princípios da moralidade e da eficiência da Administração Pública, ao vedar, expressamente, operação de crédito ente o ente político e a instituição financeira estatal sob seu controle, o que assegura uma gestão fiscal responsável, objetivada pela Lei de Responsabilidade Fiscal”.[1]

Lembro-me que o governo do Estado de São Paulo tomava dinheiro “emprestado” do Banespa até para financiar a folha. Resultado: o Banespa quebrou e foi adquirido por um grupo privado, hoje, Santander.

Logo, reter recursos que deveria repassar à CEF, por exemplo, seria o mesmo que tomar o valor retido à título de operação de crédito (mútuo) feita com a CEF.

De fato, o efeito é o mesmo: a União faz uma operação de crédito de 200 milhões, por exemplo, com a CEF e traz para o Tesouro a referida importância, ou ela não faz a operação de crédito com a CEF, mas ela, deixa de repassar os mesmos 200 milhões devidos a CEF na forma da lei orçamentária sob execução. Em termos matemáticos, isso está correto. Dois mais dois é igual a quatro, tanto quanto dois mais três, menos um.

Só que uma categoria jurídica não pode ser definida ou identificada pelos seus efeitos. Se assim fosse o suicídio seria a mesma coisa que o homicídio, porque em ambas as hipóteses é inafastável o evento morte: não há suicídio sem morte, nem há homicídio sem que alguém tenha morrido. Mas, se são duas categorias jurídicas distintas é porque a causa de um e de outro evento não é a mesma.

No caso sob exame, a União não firmou e nem pretendeu firmar com as instituições bancárias oficiais qualquer contrato de operação creditícia, o que basta para afastar, ipso facto, a incidência do art. 36 da LRF.

Na hipótese sob análise, a União não é e nunca foi devedora de recursos financeiros em relação às instituições financeiras oficiais e a nenhuma das demais unidades orçamentárias destinatárias de verbas consignadas na LOA. As receitas públicas (receitas derivadas e receitas originárias) concentradas no Tesouro pertencem, na realidade, à sociedade em geral para cumprimento dos fins do Estado. É bem diferente daquela outra situação em que a União contrai uma nova dívida por meio de operação financeira com uma agência financeira situada no exterior, não para trazer recursos para o País, mas, para efetuar o pagamento de juros vencidos, como decorrência do fracasso em atingir as metas do superávit primário. Aqui sim, cabe falar em nova operação de crédito com a sua credora original.

Finalmente, a violação das normas da LRF não caracteriza o crime de responsabilidade, como supõem alguns estudiosos. A afronta às normas da LRF pode caracterizar o crime contra as finanças públicas, conforme as tipificações da Lei nº 10.028 de 19 de outubro de 2000. Está havendo uma tremenda confusão entre crime de responsabilidade, com Lei de Responsabilidade Fiscal.

Logo, é preciso comprovar que as pedaladas fiscais atentam contra a lei orçamentária, e não contra a LRF.

O que aconteceu no caso sob análise?

Simplesmente, o Tesouro não repassou, no devido tempo, os recursos a eles destinados como tem acontecido costumeiramente em todas as outras dotações consignadas na LOA para atendimento das despesas com a saúde, com a educação, com os transportes, com o desenvolvimento científico etc. Não é razoável afirmar que em todos esses casos a União contraiu dívidas com as unidades orçamentárias aí mencionadas, que sequer têm personalidade jurídica.

Basta confrontar as despesas fixadas e as despesas executadas para constatar que nenhuma das dotações foram executadas por inteiro até o final de cada exercício, mesmo em casos em que houve superávit de receita, isto é, arrecadação superior àquela estimada na LOA que serviu de base para a fixação de despesas. É claro, que nesses casos é possível que tenha havido desvio de verbas, incorrendo o gestor público em ato de improbidade administrativa nos termos da Lei nº 8.429/92 que, aliás, também não caracteriza crime de responsabilidade, mas o agente público condenado por ato de improbidade, por decisão judicial transitado em julgado, perde a função pública e fica inelegível por um período que vai de três anos até dez anos (art. 12).

Comprovar a retenção intencional de recursos financeiros para violar a lei orçamentária não é fácil, porque o nosso orçamento não é impositivo, mas apenas autorizativo, facultando ao Executivo remanejar as verbas por decreto até determinado percentual em cada dotação, e o que ultrapassar desse limite, por meio de autorização legislativa.

Ainda que no decorrer do exercício de 2014 tivesse havido retenção intencional de recursos que deveriam ter sido repassados às instituições financeiras oficiais, nos termos da LOA sob execução, para maquiar o balanço do exercício de 2014, como sustentado pelo TCU, pergunta-se, qual teria sido o dispositivo da lei orçamentária patentemente infringido? Ninguém aponta e nem se descobre. Outrossim, a violação da lei orçamentária que enseja o impedimento da Presidente é aquela praticada no exercício da função, não podendo a irregularidade do passado ser invocada para aplicação no presente, sob o pretexto de ter havido reeleição. O novo mandato só pode ser questionado em face de violação de lei orçamentária no curso do atual mandato. A LOA é uma lei ânua de efeito concreto. Diferente a hipótese de acusação por crime de responsabilidade por atentar contra a probidade na administração (art. 85, V da CF e art. 9º, item 7 da Lei nº 1.079/50) , caso em que envolve o modo de proceder incompatível com a dignidade, a honra e o decoro do cargo.

A verdade é que as pedaladas sempre existiram e nunca antes foram questionadas. Quando um governo perde a credibilidade e a legitimidade, qualquer irregularidade pode ser motivo de impedimento do governante. Ao contrário, um governo respaldado por parcela ponderável da população pode executar às avessas a lei orçamentária, conquanto que conduza bem a economia do País. O orçamento é meio e não fim. Mesmo com a comprovação da existência de pedaladas no exercício de 2015, o que afasta o argumento principal do governo de que não pode servir da base para o impeachment fatos do passado, não é tranquilo do ponto de vista jurídico abrir um processo de impedimento com base nessas pedaladas. É preciso que se aponte qual a norma da lei orçamentária patentemente infringida. Alegação de continuidade da pedalada serve, tão só, para acrescentar mais um componente político contra a permanência da governante que demonstra desprezo pelos órgãos fiscalizadores e controladores da execução orçamentária.

5 Crime de responsabilidade segundo a CF e a Lei nº 1.079/50

As pedaladas fiscais, por si só, não bastam para configurar o crime de responsabilidade a que se refere o art. 85, VI da CF in verbis:

“Art. 85. São crimes de responsabilidade os atos do Presidente da República que atentem contra a Constituição Federal e, especialmente, contra:

VI- a lei orçamentária”.

Portanto, tanto a afronta aos dispositivos constitucionais, quanto a afronta à lei orçamentária caracterizam o crime de responsabilidade.

Não é a LRF que define o crime de responsabilidade, mas a Lei nº 1079/50.

O art. 10 dessa lei define 12 hipóteses de caracterização do crime. Nem todas essas hipóteses foram recepcionadas pela Constituição vigente a começar pelo inciso 1 em que caracteriza como crime a “não apresentação ao Congresso Nacional da proposta orçamentária dentro dos dois primeiros meses de cada sessão legislativa”. Essa regra não está mais em vigor, porque na ausência de lei complementar a respeito, referida no § 5º, do art. 166 da CF, aplica-se o disposto no inciso III, do § 2º do art. 35 do ADCT, isto é, a proposta orçamentária deverá ser encaminhada ao Congresso Nacional até o final do 2º quadrimestre de cada exercício em curso. E o governo enviou tempestivamente ao Parlamento essa proposta orçamentária de 2016 até o final de agosto de 2015, ainda, que com inusitado erro crasso ao prever um déficit de 30,5 bilhões.

A proposta não foi aceita pelo Congresso e o Executivo ficou de refazê-la. Mas, não se sabe como está, porque ninguém voltou a comentar o assunto. Provavelmente, a proposta deve estar dormitando em uma das prateleiras do Palácio, aguardando a aprovação do pacote tributário para tapar o buraco de 30,5 bilhões, dada a total incapacidade do governo de reprogramar o seu plano de ação nos limites das possibilidades do Tesouro.

Não iremos transcrever as 12 hipóteses configuradoras do crime de responsabilidade previstas no art. 10, por desnecessárias, mas, citemos o seu inciso 4:

“infringir, patentemente, e de qualquer modo, dispositivo de lei orçamentária”.

Esse inciso requer a presença do elemento volitivo na modalidade de dolo. Ninguém infringe patentemente uma norma orçamentária repetidas vezes sem querer.

Só que a caracterização de ação dolosa do gestor público requer dilação probatória, inclusive, perícia contábil para saber exatamente a causa do não repasse de recursos financeiros aos bancos oficiais nos momentos adequados. Deve-se indagar se havia disponibilidade de caixa para atender aos programas sociais a cargo dos bancos oficiais. Em caso positivo, cabe indagar, ainda, se havia outros compromissos mais urgentes que devessem ser atendidos com prioridade. É preciso saber, pelo exame dos relatórios bimestrais de execução orçamentária, que a LRF obriga a dar publicidade, se haviam ou não outros setores que não os atendidos pelos bancos oficiais, que igualmente ficaram sem repasses oportunos. E pelo exame do balancete mensal é preciso verificar o comportamento da receita em face da despesa realizada em cada mês. O certo é que o atraso no repasse de recursos à CEF não comprometeu os programas sociais a seu cargo, por conta da utilização de recursos do FGTS existentes de sobra, como já vimos.

Tudo isso é muito complicado para fundamentar juridicamente o pedido de impeachment, principalmente, porque não há na lei orçamentária norma expressa determinando os repasses nos momentos certos e determinados. O que há é uma presunção genérica de que os recursos concentrados no Tesouro devem se repassados aos órgãos e entidades dentro da programação de cada unidade orçamentária. Sabemos que isso não tem acontecido com precisão nas três esferas políticas. Muitas vezes, os recursos são disponibilizados tardiamente, após os efeitos danosos decorrentes da insuficiência de verbas.Na esfera da União, as verbas oriundas de emendas parlamentares (negociação entre o Executivo e o Legislativo) eram sistematicamente represadas provocando a reação do Congresso Nacional que apresentou a PEFC nº 565/06 prevendo o orçamento impositivo em lugar do sistema orçamentário atual que é meramente autorizativo. O Legislativo autoriza as despesas, mas não obriga exaurir as verbas de cada dotação, podendo as verbas serem remanejadas para outras unidades ou outros programas, o que não seria possível com o orçamento impositivo.

Outrossim, apesar de a lei orçamentária ser anual, prevendo a arrecadação e despesas ao longo dos doze meses, sabe-se que os governos das três entidades políticas param de fazer empenhos nos últimos dois meses do exercício, atrasando de modo geral todos os pagamentos de dívidas contratuais. Até o setor privado seguiu o mesmo caminho. Dívidas não são satisfeitas no final de exercícios, sob o pretexto de que elas não estão na previsão orçamentária, devendo aguardar o início do exercício seguinte. Por que isso? Respondo: para maquiar o balanço do exercício e demonstrar eficiência dos dirigentes da empresa aos olhos dos acionistas, também para fazer caixa com vistas ao pagamento do 13º salário. Dessa forma, as pedaladas fiscais, que sempre existiram em maior ou menor escala, por si só, são irrelevantes para a caracterização do crime de responsabilidade.

É claro que o TCU, ao exarar o parecer pela rejeição de contas, o fez baseado em outros vários argumentos que não iremos analisar por não ter pertinência direta com as pedaladas fiscais. Esclarece-se, por oportuno, que o parecer do TCU não tem, nem deve ter por objetivo abrir o caminho para o impeachment. O Congresso Nacional pode decidir politicamente aprovando ou rejeitando as contas do Executivo, com o parecer contrário ou favorável do TCU, que não tem efeito vinculativo.

6 Abertura de créditos extraordinários

Na verdade, há um outro argumento, não lembrado pelos autores do pedido de impeachment, que poderia fundamentar o pedido por conta da violação de texto constitucional e de normas orçamentárias de forma a caracterizar, de plano, o crime de responsabilidade na forma do art. 10, inciso 4 retro citado.

Basta verificar as publicações no DOU, com incrível frequência, de abertura de créditos extraordinários mediante anulação parcial de verbas consignadas em diversas dotações, para atender despesas que manifestamente nada têm de extraordinário, violando direta e ostensivamente disposições constitucionais e legais.

Esse fato infringe, não apenas o inciso 4, do art. 10 da Lei nº 1.079/50, como também, o caput do art. 85 de CF que define como crime de responsabilidade o atentado contra a Constituição Federal e à lei orçamentária.

As despesas extraordinárias são aquelas imprevisíveis e urgentes a serem atendidas mediante abertura de créditos extraordinários, tendo como fontes a arrecadação de tributos de natureza temporária: empréstimo compulsório (art. 148, I da CF) e impostos extraordinários (art. 154, II da CF). Não podem ter como fonte de custeio dessas despesas extraordinárias, a anulação parcial de verbas consignadas em outras dotações, como o Executivo vem fazendo corriqueiramente, como se se tratasse de abertura de crédito adicional especial em que a fonte de custeio é bem mais ampla, podendo, inclusive, recorrer à receita creditícia, ou créditos decorrentes de operações mobiliárias ou imobiliárias.

As despesas extraordinárias só pode ter como fonte de custeio os dois tributos citados, porque só servem para atender despesas imprevisíveis e urgentes – guerra externa, comoção interna ou calamidade pública – nos precisos termos do art. 41, III da Lei nº 4.320/64 e do art. 167, § 3º da CF in verbis:

“A abertura de crédito extraordinário somente será admitida para atender despesas imprevisíveis e urgentes, como as decorrentes de guerra, comoção interna ou calamidade pública, observado a disposto no art. 62”.

Ora, se examinarmos as inúmeras medidas provisórias baixadas pelo legislador palaciano para abrir créditos extraordinários veremos que em todas elas há uma confusão entre “despesas imprevisíveis” e “despesas imprevistas” na LOA, e, entre a “urgência” proclamada no art. 62 da CF, enquanto requisito para expedição de medida provisória, e “urgência” reclamada pela situação conjuntural caracterizadora da despesa extraordinária.

Posto que não estamos em guerra com nenhum país estrangeiro, nem há comoção intestina, e tampouco, calamidade pública resta patente a violação de dispositivo constitucional (art. 163, § 3º) e da norma orçamentária. Há uma deliberada confusão entre despesas imprevisíveis e despesas previsíveis, porém, não previstas na LOA, com o manifesto propósito de alterar a programação orçamentária aprovada pelo povo por meio de seus representantes no Congresso Nacional.

As dotações fixadas com as respectivas verbas consignadas na LOA representam o direcionamento de despesas segundo a vontade popular representada pelos deputados que votaram e aprovaram a proposta orçamentária que outra coisa não é senão o programa de governo. As despesas fixadas na LOA significam direcionamento das receitas arrecadadas para atendimento dos setores prioritários da sociedade segundo a vontade popular, de conformidade com a teoria do orçamento participativo que tem sua origem no PT.

Remexer e desmontar a LOA por meio de medida provisória configura um atentado, não só à lei orçamentária, como também à soberania popular refletida nas despesas fixadas nas dotações orçamentárias aprovadas pelos representantes do povo.

Trata-se de uma manipulação orçamentária das mais graves que faz com que o governante perca a legitimidade de seu mandato por violação ostensiva e consciente do princípio da legalidade das despesas, um corolário do princípio da legalidade das receitas derivadas (tributos). O povo que consente na arrecadação é o mesmo que consente no direcionamento dos gastos públicos (emprego das receitas).

Essa constatação não demanda dilação probatória alguma. Basta confrontar os textos do art. 167, § 3º da CF, do inciso III, do art. 41 da Lei nº 4.320/64 com as medidas provisórias que abriram os créditos extraordinários para constatar de plano que as mais diferentes despesas normais e rotineiras foram acobertadas pelo manto das “despesas extraordinárias” que de extraordinárias só têm o nome.

Essas “despesas extraordinárias”, abertas por medidas provisórias fora das hipóteses materialmente configuradoras de situações imprevisíveis e urgentes, já foram de há muito consideradas inconstitucionais pelo STF, como se pode verificar das ADIs n. 4.048 (DJ de 22-8-08) e 2925 (DJ de 4-3-2005).

Logo, não é dado à Presidente alegar desconhecimento da ilegalidade e inconstitucionalidade da medida que vem adotando como rotina em seu governo.

Só há um problema. É que essas medidas provisórias atentatórias da Constituição e das normas da lei orçamentária vêm sendo sistematicamente aprovadas e convertidas em lei pelo Congresso Nacional. Logo, deputados e senadores são coniventes com as situações configuradoras do crime de responsabilidade. É verdade que essas medidas provisórias que abrem créditos extraordinários não passam pelo crivo das comissões e nem são amplamente discutidos no Parlamento que as tem aprovado automaticamente. Mas, isso não muda o fato de que o Congresso Nacional referendou o ato presidencial viciado.

Para dar embasamento jurídico ao pedido de impeachment é preciso que a denúncia seja apresentada tão logo publicada a medida provisória abrindo crédito extraordinário, bastando ficar atento ao DOU que tem publicado quase que semanalmente esse tipo de desvio de recursos orçamentários. Mas, trata-se apenas de uma possibilidade jurídica não sendo provável a apreciação da denúncia antes da conversão da medida provisória em lei, quando, então, estará aberto o caminho para inúmeros questionamentos, inclusive, no Judiciário.

7 Leis orçamentárias nunca foram levadas a sério

A difícil situação financeira que estamos atravessando é fruto exclusivo do desmantelamento sistemático das normas orçamentárias por vontade unilateral da governante. Não satisfeita com os 20% das receitas da União que fica livre para gastar à discrição do Executivo, conforme DRU que vem sendo prorrogada a cada quatro anos por meio de Emendas, a Presidente vem desvinculando o restante (80%) segundo a direção dos ventos que sopram no Planalto, direcionando as despesas a seu talante por meio de intermináveis medidas provisórias que acabam por desfigurar por completo a LOA aprovada pelo Parlamento. É preciso colocar um freio nisso e reconduzir o governo à trilha da legalidade e da constitucionalidade.

O certo é que leis orçamentárias neste País nunca foram levadas a sério. O orçamento anual é visto pelas autoridades que deveriam fiscalizar e controlar a sua execução como algo simbólico, uma mera formalidade exigida pela Constituição, tanto é que tivermos um exercício em que o orçamento anual só foi aprovado no último quadrimestre do ano. Aliás, os atrasos tornaram-se uma regra por conta das negociações políticas intermináveis. O orçamento, entre nós, é como o precatório judicial, mera formalidade constitucional para pagamento da condenação judicial pelo poder público, nunca para ser pago conforme mandamento constitucional, alterado por sucessivas e intermináveis emendas igualmente descumpridas mediante revezamento de órgãos e instituições públicas.

Enfim, não há embasamento jurídico razoável centrado na violação de normas da lei orçamentária. Por isso, apegar-se ao formalismo da lei orçamentária para deflagrar o processo de impeachment não se coaduna com o costumeiro desrespeito às normas orçamentárias desde a origem até a final execução do orçamento anual em 31 de dezembro de cada exercício. Talvez fosse mais fácil ancorar o pedido de impeachment no atentado contra a probidade na administração com fundamento no art. 85, da CF, c.c. o art. 9º, item 7 da Lei nº 1.079/50.

8 Conjuntura política anormal

De qualquer modo decretar o impeachment na conjuntura atual é complicado. Na verdade, o aspecto jurídico não é tão importante quanto ao aspecto político que predomina no impeachment. Em havendo perda de legitimidade do governante comprometendo a governabilidade, o caminho do impeachment abre-se naturalmente em condições normais. Só que a nossa situação é atípica. O órgão constitucionalmente incumbido de deflagrar o processo de impeachment e o órgão incumbido de julgar o processo sob a presidência do Presidente da Corte Suprema, estão ocupados por parlamentares contra os quais pesam fundadas suspeitas de envolvimento com o esquema de desvios de recursos públicos.No caso de abertura ilegal e inconstitucional de despesas extraordinárias, o Congresso Nacional aprovou todas as medidas provisórias nesse sentido, apesar da jurisprudência contrária firmada pelo STF.

Nesse mar de lamas em que se acham atoladas as nossas instituições é muito difícil, de forma legítima, legal e constitucional afastar a Presidente que cometeu o crime de responsabilidade.

9 Conclusão

A única solução viável para por cobro a essa situação de ingovernabilidade que se aprofunda a cada dia que passa é o julgamento célere do processo em curso perante o Tribunal Superior Eleitoral que apura os vícios do processo eleitoral.

SP, 9-10-15.

* Jurista, com 30 obras publicadas. Acadêmico, Titular da cadeira nº 20 (Ruy Barbosa Nogueira) da Academia Paulista de Letras Jurídicas. Acadêmico, Titular da cadeira nº 7 (Bernardo Ribeiro de Moraes) da Academia Brasileira de Direito Tributário. Acadêmico, Titular da cadeira nº 59 (Antonio de Sampaio Dória) da Academia Paulista de Direito. Sócio fundador do escritório Harada Advogados Associados. Ex-Procurador Chefe da Consultoria Jurídica do Município de São Paulo.

Site: www.haradaadvogados.com.br



[1] Cf. nosso Responsabilidade Fiscal. São Paulo: Juarez de Oliveira, 2002, pg. 166.

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