Na vigência do Código Civil de 1916 foi sancionada a lei que institui o Estatuto da Mulher casada, Lei nº 4.121, de 27-8-1962.
Essa lei, mediante alteração do art. 6º do CC, retirou a eiva da incapacidade relativa da mulher casada, então, equiparada a menores de idade, pródigos e silvícolas, a revelar quão retrógrados eram os legisladores da época.
O art. 242 do CC de 1916, por sua vez, em sua nova redação ficou assim redigido:
“Art. 242. A mulher não pode, sem autorização do marido:
I – praticar os atos que este não poderia sem o consentimento da mulher;
……
IV – contrair obrigações que possam importar em alheação de bens do casal.”
Quando movida a execução contra o marido (por aval dado em títulos de créditos) seguida de penhora de bens de raiz, era comum a mulher opor embargos de terceiro, com base no art. 242 do CC em sua nova redação conferida pelo Estatuto da Mulher Casada.
A jurisprudência se dividiu: a) corrente que determinava a redução da penhora à metade, a fim de preservar a meação da mulher; b) a corrente que condicionava essa redução à prova de que a mulher não se beneficiou do aval dado pelo marido, uma prova negativa de difícil concretização.
A insegurança jurídica com essas decisões díspares resultou na edição da Lei nº 8.009, de 29-3-1990, que dispõe sobre a impenhorabilidade do bem de família.
Dispõe o art. 1º dessa Lei:
“Art. 1º O imóvel residencial próprio do casal, ou da entidade familiar, é impenhorável e não responderá por qualquer tipo de dívida civil, comercial, fiscal, previdenciária ou de outra natureza, contraída pelos cônjuges ou pelos pais ou filhos que sejam seus proprietários e nele residam, salvo nas hipóteses previstas nesta lei.
Parágrafo único. A impenhorabilidade compreende o imóvel sobre o qual se assentam a construção, as plantações, as benfeitorias de qualquer natureza e todos os equipamentos, inclusive os de uso profissional, ou móveis que guarnecem a casa, desde que quitados.
Os veículos de transportes, obras de arte e adornos suntuosos estão excluídos da cláusula de impenhorabilidade (art. 2º).
O art. 3º, por sua vez, enumera as hipóteses em que não se aplica a impenhorabilidade:
“Art. 3º A impenhorabilidade é oponível em qualquer processo de execução civil, fiscal, previdenciária, trabalhista ou de outra natureza, salvo se movido:
I – em razão dos créditos de trabalhadores da própria residência e das respectivas contribuições previdenciárias; (Revogado pela Lei Complementar nº 150, de 2015)
II – pelo titular do crédito decorrente do financiamento destinado à construção ou à aquisição do imóvel, no limite dos créditos e acréscimos constituídos em função do respectivo contrato;
III – pelo credor da pensão alimentícia, resguardados os direitos, sobre o bem, do seu coproprietário que, com o devedor, integre união estável ou conjugal, observadas as hipóteses em que ambos responderão pela dívida; (Redação dada pela Lei nº 13.144 de 2015)
IV – para cobrança de impostos, predial ou territorial, taxas e contribuições devidas em função do imóvel familiar;
V – para execução de hipoteca sobre o imóvel oferecido como garantia real pelo casal ou pela entidade familiar;
VI – por ter sido adquirido com produto de crime ou para execução de sentença penal condenatória a ressarcimento, indenização ou perdimento de bens.
VII – por obrigação decorrente de fiança concedida em contrato de locação.” (Incluído pela Lei nº 8.245, de 1991)
Esse rol, no nosso entender, não é taxativo cabendo ao juiz analisar em cada caso concreto o verdadeiro sentido do bem de família, que tem o propósito de assegurar uma vida condigna ao titular do bem e de sua família.
Tivemos um caso peculiar na nossa vida profissional.
Patrocinei uma ação ordinária de indenização a favor de uma cliente que teve a sua casa completamente destruída por culpa de um vizinho que mantinha um velho prédio construído e abandonado no topo de um talude.
Esse morador havia sido advertido reiteradas vezes pela subprefeitura local e pelo corpo de bombeiro para proceder obras de escoramento do talude, cuja construção ameaçava desabar sobre a casa da minha cliente localizada no nível mais baixo.
Ele ignorou todas as intimações. Um dia o velho prédio desabou sobre a casa da minha cliente. Felizmente não houve vítimas.
Minha cliente, pobre e sem recursos para reconstrução da casa destruída, foi morar de favor em um porão da casa de um parente. Ficou física e psicologicamente afetada.
Ganhamos a ação e na execução foi penhorada a casa onde residia o autor da tragédia. Este embargou a execução alegando impenhorabilidade do bem de família.
Retrucamos que não seria justo aquele que destruiu o bem de família de outrem condenando-o a uma vida não condizente com a dignidade humana, roubando-lhe, ainda a saúde física e mental fique sem responder pela sua omissão dolosa continuando com uma vida confortável, alheio ao sofrimento alheio.
Os embargos foram rejeitados e o imóvel penhorado acabou sendo adjudicado pela minha cliente.
A pobre cliente, porém, não chegou a sentir o gosto da vitória, pois nunca mais se recuperou de seus distúrbios mentais.
Muitas vezes, a jurisprudência dá ao bem de família uma proteção além do que resulta do texto positivo.
Refiro-me à impenhorabilidade proclamada pelo STJ de imóvel dado em caução para garantia de locação comercial.
Aquele Colendo Tribunal, em duas oportunidades, deixou de aplicar a exceção prevista no inciso VII, do art. 3º, da Lei nº 8.009/90, que coloca fora da impenhorabilidade na hipótese de “obrigação decorrente de fiança concedida em contrato de locação” (REsp nº 1.935.563 e REsp nº 1.789.505).
Mediante interpretação literal do texto acaba favorecendo aquele que dá o imóvel em caução para garantir a locação comercial, que tem o mesmo sentido e efeito da fiança. Proteção além do assegurado no texto legal, ainda que com as melhores das intenções, sempre acaba gerando efeitos colaterais indesejáveis não previstos pelo legislador.
SP, 20-6-2022.
Por Kiyoshi Harada