Este deveria ser (e acaba sendo, em alguma medida) um artigo sobre a responsabilidade civil do Estado decorrente da morte de detento sob sua custódia.
Conquanto a Constituição Federal assegure aos presos o respeito à integridade física e moral (artigo 5º, inciso XLIX), de sorte que a execução da pena se verifique de maneira humanizada, assentaríamos, em linhas gerais, que o mesmo ordenamento constitucional consagrou a responsabilidade objetiva estatal pelos danos causados por agentes públicos, independentemente da demonstração de culpa (artigo 37, §6º).
Ante os contornos estabelecidos pelo Supremo Tribunal Federal, no julgamento do Recurso Extraordinário n.º 841.526/RS (dotado de repercussão geral), o modelo de responsabilização objetiva se subsume à denominada teoria do risco administrativo, sendo suficiente, para caracterização do dever de indenizar, a demonstração do dano e do nexo de causalidade, admitindo-se a exclusão da responsabilidade estatal ante a ocorrência de fatos extraordinários imprevisíveis ao e/ou incontroláveis pelo poder público, a saber: caso fortuito, força maior e culpa exclusiva da vítima. Ademais, a imputação objetiva da responsabilidade, segundo entendimento estabelecido em tal julgado, aplicar-se-ia a comportamentos comissivos e omissivos dos agentes estatais.
Contudo, a leitura de uma decisão relacionada à matéria, oriunda do Tribunal de Justiça do Estado de São Paulo, afastou-nos de tal desiderato, parecendo de menor importância as considerações acerca da responsabilidade civil em si mesma considerada.
Trata-se de acórdão assentado, por unanimidade, pela 5ª Câmara de Direito Público da Corte Bandeirante, no recurso de apelação n.º 1000456-71.2016.8.26.0486, julgado em 06 de abril de 2017, no qual negada indenização por dano material e moral reivindicada pela companheira de um detento suicida sob a custódia do sistema penitenciário estatal.
Consta da decisão que o encarcerado, removido a pedido para uma espécie de “seguro” no qual acautelado contra agravo praticável pelo restante da população carcerária, enforcou-se com cobertor disponibilizado na unidade prisional, sobrevindo o óbito. Com suporte nas provas dos autos, considerou-se que o suicida foi “o único e voluntário agente da própria morte”, sendo que “Nenhuma vigilância extraordinária por parte dos oficiais penitenciários (…) seria razoavelmente suficiente para evitar o sucesso suicida”. Em suma, entendeu-se caracterizada a culpa exclusiva da vítima, excludente da responsabilidade civil imputada ao Estado pela autora da ação.
Se a isso se resumisse, estaríamos diante de um julgamento jurídico. O desconforto que a decisão projeta reside no julgamento moral que o aresto encerra.
Para além de concluírem que “Refoge ao poder público evitar desatinos psicoemocionais do encarcerado”, os julgadores recorrem a “obra clássica” (Medicina Legal, da lavra do Dr. Flamínio Fávero) para endossarem o suicídio enquanto “deserção”, “covardia de enfrentar a luta” e “fuga ao cumprimento do dever”. Ainda de maneira indireta, registra-se aplauso convicto àqueles que chamam o suicida de “anormal-psíquico”, porquanto patológico, aberrante, já que “Quem deserta da vida não tem perfeita saúde mental”.
Com o devido respeito, o Direito pátrio, no relacionar-se com a axiologia, não tornou objetivos valores que imponham ao suicida tal sorte de predicativos e ao suicídio tal juízo de desvalor.
Em oposição às considerações registradas no julgado, o que impediria (em exemplo igualmente extremo), senão o mais puro subjetivismo, considerar o suicida como o mais corajoso dos indivíduos, enquanto executor do seu mais extremo e último ato? A cogitação de Goethe (Os sofrimentos do jovem Werther) sobre os limites da natureza humana, afirmando que ela “pode suportar, até certo ponto, alegrias, tristezas, dores; se ultrapassar este limite, sucumbirá. Não se trata, portanto, de discutir se um homem é fraco ou forte, e sim de saber se ele pode suportar a medida dos seus sofrimentos, sejam eles morais ou físicos”, será menos exata? E o que dizer da dureza versada em Álvaro de Campos, heterônimo de Fernando Pessoa (Se te queres matar, por que não te queres matar?): “Fazes falta? Ó sombra fútil chamada gente!/Ninguém faz falta; não fazes falta a ninguém…/Sem ti correrá tudo sem ti./Talvez seja pior para outros existires que matares-te…/Talvez peses mais durando, que deixando de durar…”? Albert Camus (O mito de Sísifo: ensaio sobre o absurdo) situou o suicídio como a grande questão da filosofia: julgar, o indivíduo, se sua vida vale ou não a pena ser vivida; Emil Cioran, já em sua obra inaugural (Nos cumes do desespero), reconheceu no suicídio a importância de não poder mais viver, como consequência de um desequilíbrio vital “que não é resultado de um capricho, mas da mais horrenda tragédia interior”; e mesmo o Conselho Federal de Medicina e a Associação Brasileira de Psiquiatria, em cartilha destinada à prevenção do ato extremo (Suicídio: informando para prevenir), conquanto registrem a frequência de doenças mentais (muitas vezes não diagnosticadas) a acometerem os suicidas, destacam componentes multifatoriais na gênese do fenômeno, como a “interação de fatores psicológicos e biológicos, inclusive genéticos, culturais e socioambientais”.
Por tamanha complexidade, cremos que juízos de (des)valor afastam o julgador da imparcialidade, afrontando, inclusive, o código ético que impõe ao magistrado evitar todo tipo de comportamento que possa refletir preconceito. O exame isento da responsabilidade civil estatal demanda valoração do contexto em que praticado o suicídio, não do ato em si ou de seu executor.
Pudesse o suicida designado desertor e covarde manifestar um último desabafo contra tal estigma, talvez o fizesse citando o já invocado Fernando Pessoa (Lisbon Revisited): “Se têm a verdade, guardem-a!/(…)/Não me macem, por amor de Deus!”.