Possíveis desdobramentos do inquérito das fake news*

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Kiyoshi Harada

Jurista e Professor. Presidente do IBEDAFT

As fake news ganharam força na mídia, desde o governo anterior, sob a presidência do jurista e professor Michel Temer.  As fake news tinham por objetivo atingir as imagens de políticos, atribuindo-lhes práticas de condutas criminais, ou comportamentos socialmente reprováveis.

Em 2019 houve a reação legislativa com a aprovação da Lei nº 13.834, de 20-12-2019, que acrescentou o art. 326-A ao Código Eleitoral (Lei nº 4.737/65) para tipificar o crime de denunciação caluniosa com a finalidade eleitoral, impondo a pena de reclusão de 2 a 8 anos e multa. Incide na mesma pena quem, comprovadamente, ciente da inocência do denunciado e com finalidade eleitoral, divulga ou propala, por qualquer meio ou forma, o ato ou fato que lhe foi falsamente atribuído. Portanto, em tese, configura crime o fato de compartilhar uma notícia falsa no Facebook. O difícil é comprovar a existência do dolo específico de atingir o denunciado com finalidade eleitoral sabendo ser inocente.

De uns tempos para cá as falsas notícias passaram a atacar as autoridades públicas em geral, inclusive, os Ministros integrantes do Supremo Tribunal Federal, hipótese em que a tipificação da Lei nº 13.834/19 não alcança seus autores, posto que nessa hipótese não se cogita de finalidade eleitoral. Porém, incide o crime da legislação penal comum.

Incomodado por esses ataques injustificáveis, o Ministro Alexandre de Morais, com fundamento no art. 441 do Regimento Interno do STF, abriu o Inquérito para investigação dos fatos delituosos que logo ficou conhecido como inquérito das fake news.

Difícil encontrar um jurista no País que reconheça fundamento legal (lei em sentido estrito) para instauração desse inquérito para investigar as fake news em âmbito nacional, com vistas à identificação e punição de seus responsáveis, inclusive, daqueles que estiverem financiando a elaboração e divulgação de notícias falsas para denegrir as imagens dos Ministros da Alta Corte do País.

O que o Regimento Interno da Corte Maior permite é tão somente a abertura de investigações para apurar as infrações penais ocorridas no âmbito da Corte Suprema, e não fora dele, em obediência ao princípio da independência e harmonia dos Poderes (art. 2º da CF).

A apuração de infrações penais contra a ordem política e social, ou em detrimento de bens, serviços da União, bem como outras infrações cuja prática tenha repercussão interestadual ou internacional, cabe privativamente à Polícia Federal, nos termos do inciso I, do § 1º, do art. 44 da Constituição.

Da mesma forma, cabe às Polícias Civis dos Estados, dirigidas por delegados de polícia, a apuração das infrações penais, ressalvadas aquelas reservadas à Polícia Federal e as infrações de natureza militar (§ 4º, do art. 144 da CF).

Não há no texto constitucional, nem em legislação ordinária geral ou especial qualquer previsão para o STF proceder a investigações de infrações penais, ainda que perpetradas contra os seus integrantes, mesmo porque caberá à Corte Maior julgar em última instância esses delitos, por meios de recursos processuais cabíveis.

Por tais razões, a então Procuradora Geral da República, Raquel Dodge, havia requerido o arquivamento do inquérito, o que foi prontamente indeferido pelo Ministro Alexandre de Morais que até hoje continua presidindo o inquérito, aparentemente, sem prazo definido para o seu encerramento.

Recentemente, o Senhor Ministro Alexandre de Morais incorporou às investigações um fato superveniente à abertura do inquérito ao determinar a intimação do Ministro da Educação por ofensas proferidas aos membros da Corte Suprema na reunião ministerial do dia 22 de abril de 2020, cujo teor das conversações havidas veio ao conhecimento público pela divulgação do vídeo autorizado pelo Ministro Celso de Melo, que preside as investigações acerca das denúncias feitas pelo Senhor Sergio Moro contra o Senhor Presidente da República pela sua suposta interferência na Polícia Federal do Rio de Janeiro.

Diga-se, a bem da verdade, além daquelas ofensas gratuitas e inadmissíveis terem sido proferidas em uma reunião fechada, elas nada têm a ver com as fake news objetos de investigação pelo Ministro Alexandre de Morais. Se for incorporando fatos novos, além daqueles que ensejaram a abertura do inquérito, essa investigação jamais terá um fim, pois, a todo instante está ocorrendo infrações penais que direta ou indiretamente atingem a honra dos integrantes do Supremo Tribunal Federal, inclusive, aquelas perpetradas de forma coletiva.

Esse fato novo motivou a impetração do habeas corpus pelo Ministro da Justiça e da Segurança Pública a favor do Ministro da Educação fazendo as vezes do Advogado Geral da União que chefia a Advocacia Geral da União, órgão incumbido da defesa dos interesses da União em juízo, bem como dos membros do governo. Embora qualquer cidadão esteja legitimado para requerer o HC a favor de qualquer investigado, no caso, está bem clara a orientação do governo de demonstrar publicamente a sua insatisfação com a convocação de um de seus Ministros.

Ato contínuo o Procurador Geral da República requereu o sobrestamento do inquérito até que o Plenário do Supremo Tribunal Federal defina os exatos limites da investigação rotulada de inquérito das fake news. O Relator do HC é o Ministro Fachin que até agora não proferiu qualquer decisão. Não há, também, por ora, a inclusão da matéria na pauta do Plenário. Por isso, as investigações continuam o seu curso normal.

Entendo, sem embargo das opiniões em contrário, que não pode, nem pode haver uma investigação para apurar infrações penais, sem prévia fixação de seu objeto. Afinal, a legislação penal, condensada no Código Penal e também esparsa em diplomas legais específicos, contempla um número infindável de condutas, que em tese, configuram delitos, e o inquérito jamais chegaria a um termo final, conspirando contra o princípio da segurança jurídica.

Infrações penais que não tenha relação com as fake news devem ser investigadas por instâncias próprias, se e quando for o caso.

Esse inquérito, além de conter vício de iniciativa, já afastado por decisão monocrática do Ministro Alexandre de Morais, caminha para um impasse institucional que poderá resultar no aprofundamento da crise entre o Judiciário e o Executivo. O Chefe do Poder Executivo tem feito críticas contundentes contra alguns dos integrantes do STF, sem apontar nomes, mas, que sabemos todos nós quais são os Ministros atingidos pela fala presidencial. Os Ministros em questão, como de hábito, guardam silêncio cauteloso a respeito dos pronunciamentos do Senhor Presidente da República, em tom cada vez mais exaltado que só tendem a piorar as coisas.

A essa altura impõe-se uma pergunta: o que acontecerá se a PGR, ao final das investigações, deixar de apresentar a denúncia em razão dos vícios formais do inquérito? Poderá o Ministro condutor das investigações formular a denúncia e acolhê-la? Recebida a denúncia, poderá o Ministro condutor das investigações participar do julgamento?

Tais indagações feitas no plano teórico e especulativo demonstram a necessidade de observar o princípio da autonomia e harmonia dos Poderes, que é um princípio protegido em nível de cláusula pétrea.

Diga-se a bem da verdade, a iniciativa do Ministro Alexandre de Morais resultou da omissão dos demais Poderes para apurar a autoria dos ataques proferidos aos integrantes do STF.

Só é preciso tomar o cuidado para não confundir críticas, contundentes que sejam, à atuação do Tribunal ou à de qualquer outro órgão público, com a divulgação de notícias falsas, tendenciosas com o intuito de denegrir a imagem das autoridades públicas. Nenhum integrante dos três Poderes está imune a críticas da população dentro do princípio da livre manifestação do pensamento, respondendo cada um, civil e criminalmente, pelos eventuais excessos praticados.

O Congresso Nacional instaurou a CPMI para investigar as fake news, mas, sabe-se que, por tradição, essas investigações, na maioria dos casos, nunca resultaram na responsabilização civil, administrativa, política ou criminal de quem quer que seja. Trata-se, na prática, de mero instrumento de aparição dos parlamentares investidos na função investigatória própria das autoridades judiciárias (§ 3º, do art. 58 da CF) que fazem as ruidosas diligências junto a estabelecimentos bancários para examinar os dados bancários de investigados, sempre acompanhados de profissionais da mídia.

Ao final das investigações são apresentados relatórios nada conclusivos que sequer se prestam como início de prova para apuração dos crimes por instâncias próprios. Contudo, algumas das CPIs produziram resultados práticos, como a CPI do PC Farias e a CPI dos Anões do Orçamento, dentre outras. A CPMI, instaurada pelo Presidente do Congresso Nacional está, ainda, em curso e quase nada se tem noticiado a respeito dela.

O Executivo quedou-se inerte no combate a ataques concentrados nos integrantes do STF. É provável que essa omissão tenha motivado um de seus Ministros a tomar a iniciativa no desempenho de função atípica da Corte. Quando um Poder se omite, outro deve intervir. É o princípio de freios e contrapesos que existe não só para conter os excessos de um Poder, como também, para suprir as omissões do Poder competente.

Enfim, é difícil prever os futuros desdobramentos desse peculiar inquérito das fake news que já extrapolou o âmbito das infrações objetos de investigação. O atual titular da PGR não é contra o inquérito das fake news, mas, discorda da falta de delimitação do campo de investigações. Uma coisa é certa: o prolongamento desse inquérito, que vem desde o governo anterior, não trará nada de positivo em termos de harmonia entre os Poderes Judiciário e Executivo.

* Artigo publicado no Migalhas, edição nº 4.865 de 3-6-2020.

SP, 2-6-2020.

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