A PEC nº 75/2015 já aprovada em 2º turno perante a Câmara dos Deputados seguiu para o Senado Federal para sua apreciação final.
Não se trata de nova moratória dos precatórios, como veiculado por alguns meios de comunicação de massa.
A PEC sob análise, na verdade, constitucionaliza a modulação de efeitos da decisão do STF que declarou a inconstitucionalidade, dentre outros preceitos, o art. 97 do ADCT que instituiu o regime especial de pagamento de precatórios vencidos e não pagos, afastando a incidência do art. 100 da CF, ressalvados os §§2º, 3º, 9º,10,11,12,13 e 14.
Por decisão proferida pelo Plenário da Corte Suprema, no dia 25-3-2015, foi dada sobrevida ao regime considerado inconstitucional por cinco exercícios financeiros, a contar de 1º de janeiro de 2016, o que resulta no esgotamento desse regime especial no final do ano de 2020, quando voltará a vigorar regime normal previsto no art. 100 e parágrafos de Constituição.
A PEC objeto destes comentários constitucionaliza os efeitos modulatórios pelo seu art. 2º, acrescentando os arts. 101,102,103,104 e 105 a Constituição de 1988, sem proceder à renumeração dos atuais dispositivos que versam sobre o Supremo Tribunal Federal, o Conselho Nacional de Justiça e o Superior Tribunal de Justiça.
Se não houver correção, essa Emenda poderá gerar problemas sérios decorrentes de duplicação dos artigos 101 a 105, cuidando de matérias diferentes.
O art. 101 prorroga o pagamento de precatórios vencidos e não pagos, em 25 de março de 2015, até o dia 31 de dezembro de 2020. Até o final de 2020 as entidades políticas devedoras deverão quitar mediante depósitos mensais em conta do Tribunal de Justiça local os precatórios sob os efeitos da moratória, além dos precatórios que se vencerem dentro desse período. O problema é que o regime especial, prorrogado até 31-12-2020, ao suspender a aplicação do caput do art. 100 e o §5º da CF suspendeu a obrigatoriedade de inserção do valor da condenação judicial requisitado até o dia 1º de julho de cada ano no orçamento da entidade devedora, para pagamento até o final do exercício seguinte. Em outras palavras, aboliu-se a figura do precatório em mora que tecnicamente deixou de existir.
O art. 102 designa que 50% dos recursos destinados ao pagamento dos precatórios em mora para quitação segundo a ordem cronológica de apresentação, porém respeitadas as preferências dos créditos alimentares e as preferências qualificadas (doentes e idosos) “sobre todos os demais débitos de todos os anos”. O restante por opção da entidade política devedora poderá ser destinado ao pagamento por acordo com o deságio máximo de 40%.
Mantida a regra de preferência sobre os créditos não privilegiados “de todos os anos” esses precatoristas continuarão nada recebendo por conta de centenas de credores com privilégios qualificados que vão surgindo diariamente, à medida que os credores de verbas alimentícias vão completando 60 anos de idade. A redação original da PEC 62/09 conferia esse privilégio qualificado apenas e tão somente aos credores alimentares que haviam completado sessenta anos na data da promulgação daquela Emenda, mas o STF declarou a sua inconstitucionalidade sob o argumento de que estaria ofendendo o princípio da isonomia. Com esse tipo de interpretação os precatoristas não privilegiados continuarão indefinidamente na fila de precatórios congelada desde 2001.
Tudo é legislado no sentido de preservar a continuidade da moratória como se esta fosse o tesouro maior da nação brasileira. De fato, só está sendo realizado o pagamento de credores com privilégio especial que recebem apenas até o limite de três vezes o valor da Requisição de Pequeno Valor – RPV –, deixando a maior parte do saldo em aberto, como que servindo de base para futuras moratórias.
Interpretação que extrai validade de um texto constitucional à custa do total esvaziamento de outro texto constitucional não obedece, a meu ver, as regras da hermenêutica. Isso só seria possível na hipótese de confronto entre uma norma constitucional e um princípio constitucional, quando este último deve prevalecer sobre a outra. Não é o caso sob exame. A interpretação sob análise viola o princípio maior da razoabilidade que se coloca como um limite à ação do própria legislador. Como é possível admitir que o credor de precatório que perdeu seu bem por desapropriação, que a Constituição manda indenizar de forma prévia e justa, nada receba até o advento do prazo final da moratória? Era preciso que o legislador constituinte derivado agisse de forma a viabilizar o pagamento simultâneo dos três tipos de precatórios, desde que não quebre a ordem de preferências. Afinal, onde a quebra da preferência em pagar, por exemplo, precatório sem privilégio 1995 se estão sendo pagos os credores privilegiados de 2015? Sugestões por nós feitas nesse sentido foram ignoradas. No regime de pagamento em vigor os recursos depositados pelos Estados e Municípios nas contas bancárias dos Tribunais irão se avolumando cada vez mais por conta da inusitada burocracia para fazer os cálculos para pagamento de até o triplo do valor da RPV. Entre a data do despacho que noticia o depósito e autoriza a expedição do mandado de levantamento, seguido de oitiva do credor e do devedor, transcorre, no mínimo, seis meses. Enquanto isso, o dinheiro depositado pelas entidades devedoras para solver os precatórios continua rendendo juros e correção monetária, parte deles direcionados ao Tribunal que ordena os pagamentos, sob a denominação de spread. Não vai nisso nenhuma crítica ao Judiciário que está desaparelhado por conta da ausência de recursos financeiros compatíveis com as suas responsabilidades. Já tivemos a oportunidade de escrever que a chamada autonomia financeira do Poder Judiciário nunca existiu na prática. De nada adianta ter a iniciativa na formulação de proposta orçamentária do Judiciário se o Executivo tem a prerrogativa de promover os ajustes por ocasião da unificação das propostas de outros Poderes e de diversos órgãos.
O art. 103 veda o sequestro enquanto os entes políticos devedores estiverem cumprindo as normas do regime especial. Não era necessário dispositivo desse jaez.
O art. 104 permite que os Estados, o DF e os Municípios utilizem até 75% dos depósitos judiciais em razão de litígios de natureza tributária para pagamento de precatórios.
Na verdade, a Lei Complementar nº 151 de 5-8-2015 disciplina essa matéria em nível nacional, permitindo a utilização pelos Estados DF e Municípios de até 20% dos depósitos judiciais feitos em processos de que são partes.
Como alguns Estados, como de Minas Gerais, por lei própria, facultou a utilização de até 75%, o legislador constituinte alterou politicamente o percentual de 70% para 75%. Por que não se alterou a LC nº 151/15? Porque, na prática, alterar a Constituição é mais fácil do que alterar uma Lei Complementar.
Finalmente, é facultado ao precatorista compensar seu crédito com os débitos que até o dia 25 de março de 2015 tenham sido inscritos na dívida ativa, desde que “observados os requisitos definidos em lei própria do ente federado”.
Ora, o Estado e o Município que quiser instituir a compensação, e não querem, não precisam de autorização constitucional para legislar a respeito. Já existe uma norma expressa no art. 170 do CTN permitindo a compensação de créditos tributários por despacho de autoridade administrativa competente, nos termos da lei específica de cada ente político.
Isso é o mesmo que colocar uma pá de cal em cima da tênue esperança que o STF havia lançado para resolver de vez essa questão dos “precatórios impagáveis” ao delegar ao Conselho Nacional de Justiça a apresentação de uma proposta normativa disciplinando “a possibilidade de compensação de precatórios vencidos, próprios ou de terceiros, com o estoque de créditos inscritos até o dia 25-3-2015, por opção do precatorista.
Como o CNJ não exerceu até agora essa faculdade, o legislador constituinte derivado resolveu deixar a critério dos entes políticos devedores efetuar ou não as compensações.
Implementada a compensação nos moldes do que estava no § 2º, do art. 78 do ADCT, mas abrangendo os precatórios de qualquer natureza, as discussões judiciais em torno de tributos que ocupam mais de 60% do tempo de atuação dos juízos e tribunais, cessariam, desafogando o Poder Judiciário, ao mesmo tempo que os entes devedores parariam de fazer dívidas sem pagar o que devem, violentando as normas da Lei de Responsabilidade Fiscal.
Perdeu-se uma oportunidade ímpar ensejada pelo Plenário do STF para resolver definitivamente os problemas decorrentes de precatórios descumpridos. Tudo indica que todos adoram o regime de precatórios impagáveis que tem fornecido munição para disparar no vazio, enquanto a realização de outras atividades úteis e essenciais ficam prejudicadas por exiguidade de tempo disponível.
* Jurista, com 30 obras publicadas. Acadêmico, Titular da cadeira nº 20 (Ruy Barbosa Nogueira) da Academia Paulista de Letras Jurídicas. Acadêmico, Titular da cadeira nº 7 (Bernardo Ribeiro de Moraes) da Academia Brasileira de Direito Tributário. Acadêmico, Titular da cadeira nº 59 (Antonio de Sampaio Dória) da Academia Paulista de Direito. Sócio fundador do escritório Harada Advogados Associados. Ex-Procurador Chefe da Consultoria Jurídica do Município de São Paulo.