provisoriedade

Um país com gosto pela provisoriedade e pelo inacabado

O gosto pela provisoriedade começou com a proclamação provisória da República pelo Marechal Deodoro da Fonseca que, como diz a história, não sabia exatamente o que estava fazendo montado em seu cavalo.

Esse movimento chamado de “proclamação da República” era, na verdade, um golpe de Estado contra a monarquia.

Desde então fala-se em pacto federativo que nunca existiu e nem há indícios de que um dia virá à luz.

É que os estudiosos da matéria, eterno enamorados da cultura alienígena mal dirigida, traçam um paralelo entre a Federação Americana que se formou de fora para dentro (federação centrípeta) e a Federação Brasileira que se formou de dentro para fora, isto é, por meio de fragmentação do Estado unitário (federação centrifuga).

Só que há um detalhe esquecido pelos estudiosos, que se limita a distinguir a federação centrípeta da federação centrífuga.

Nos Estados Unidos a Federação aconteceu por meio de pacto celebrado pelos Estados independentes.

No Brasil não houve pacto algum, simplesmente porque a nossa Federação nada tem de natureza contratual, mas decorre unicamente da disposição normativa.

Como é sabido a fonte de obrigações reside no contrato ou na lei, onde a vontade das partes não tem relevância jurídica alguma.

Concluindo, a nossa Federação é simplesmente normativa, descabendo a cogitação do tão falado pacto federativo como cláusula pétrea.

Essa equivocada noção incorporou-se na cultura dos estudiosos do direito, sendo tida como verdade inconteste.

Mas, o tema deste artigo versa sobre a provisoriedade que casa com a noção de algo inacabado.

Exemplos de coisas provisórias e inacabadas existem a centenas.

Contudo, lembremos algumas delas, como a “ferrovia dos mil dias”, a transposição do Rio São Francisco, a construção do complexo da Usina Nuclear de Agra dos Reis que continua em construção, com reparações permanentes das partes já concluídas (provisoriamente).

Em São Paulo poderemos lembrar episódios mais recentes, como o monotrilho na região do Aeroporto e da Água Espraiada, cujas obras ficaram paralisadas, sem que nenhuma autoridade governamental viesse a público para explicar o porquê dessa paralisação.

Tamanho o gosto pela provisoriedade que até medidas provisórias foram tornadas permanentes pela Emenda Constitucional nº 32/2001. Medida provisória permanente encerra contradição em termos. A CPMF que nasceu sob o signo da provisoriedade teria se tornado permanente se dependesse da vontade dos deputados. Felizmente a intervenção do Senado Federal extinguiu a anomalia tributária enxertada pela EC n 3/93. O Senado Federal fez as vezes da Casa do povo ante sua omissão, indiferente ao reclamo popular.

O pacto federativo só ocorrerá quando implementado o federalismo cooperativo previsto ao art. 23 da CF, totalmente esquecido pelos legisladores que têm um amor doentio pelas coisas efêmeras e inacabadas.

Houve uma tentativa de resolver a questão da desigualdade entre os Estados na partilha da competência tributária.

Estados e municípios pobres, próprios de um País de dimensão continental (o Brasil ocupa a 5ª posição mundial em termos de extensão territorial) deveriam receber transferências de parcelas da arrecadação federal (IPI/IR) para compensar a diminuta arrecadação decorrente de economia precária. Foi o que pensaram os senadores e deputados, sob a roupagem de legisladores constituintes em um momento de lucidez.

Mas, logo retornaram à normalidade e fizeram a partilha de tal forma que o objetivo visado jamais poderia ser atingido.

De fato, a transferência em sua maior parte alcançou indiferentemente Estados ricos e pobres, restando para as regiões Norte, Nordeste e Centro-Oeste apenas 3% na partilha do Fundo composto com 50% do produto da arrecadação do IPI e do IR.

Resultou disso um Brasil desigual que a inteligente elite pensante da nação quer combater sem ao menos conseguir descobrir a causa de tanta desigualdade econômico-social. Se sabem não querem corrigir! Ficam só nos discursos e nas providências legislativas que   não são auto-operativas. O tal do Fundo de Combate à Pobreza não saiu do papel; ninguém mais fala dele.

Os inteligentes legisladores conseguiram preconizar uma Constituição que tem recebido uma tonelada de emendas que acabam com o que restou de uma ideia vaga sobre a Federação.

Esses legisladores atuam sob a égide de uma bandeira que traduz a ideia de proibição de fazer a coisa certa.

Só no episódio para contenção da disparada de preços de combustíveis editou-se três leis complementares.

A de nº 190/2022 que regulou a tributação interestadual do ICMS. Plantaram cuidadosamente a semente da confusão ao prescrever a noventena que deu azo a centenas de lides judiciais muito a gosto dos legisladores.

A de nº 192/2022 criou uma inconstitucionalidade gritante ao determinar a fixação de alíquota uniforme invadindo a esfera de competência dos Estados. A contestação em juízo aconteceu imediatamente como esperado pelos legisladores que não estão interessados em clima de paz e tranquilidade.

Finalmente, os legisladores, em um raro momento de lucidez, tiveram a ideia de definir os produtos essenciais, o que deveriam ter feito logo após a promulgação da Carta de 1988, e prescreveram a proibição de tributar esses bens essenciais em patamar superior à dos produtos em geral. É a lei complementar nº 194/2022. Corre-se o risco de ser torpedeada por novos instrumentos legislativos ou decisões judiciais para manter o clima de confusão generalizada.

A aplicação dessa Lei Complementar nº 194/2022, que efetivamente concorreu para diminuir o preço dos combustíveis, deu azo a pleitos de governadores cobrando “ressarcimento” da União por conta da queda de arrecadação.

Até o STF envolveu-se nessa questão para intermediar a discórdia que surgiu com o advento da lei que estabelece o cumprimento do mandamento constitucional.

Em outras palavras, os governadores querem “ressarcimento” por parte da União para deixar de violar a Constituição com a tributação descabida do ICMS sobre os combustíveis.

O Brasil é, de fato, um país singular.

SP, 15-8-2022.

Por Kiyoshi Harada

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