Já está se incorporando na jurisprudência do STF a flexibilização dos direitos fundamentais concernentes ao direito adquirido, ao ato jurídico perfeito e à coisa julgada, previstos no art. 5º, XXXVI da CF e protegidos em nível de cláusula pétrea (art. 60, § 4º, inciso IV da CF).
Começou com a violação do direito adquirido e do ato jurídico perfeito e, agora, chegou a vez do desrespeito à coisa julgada, como veremos a seguir.
A violação dos princípios do direito adquirido e do ato jurídico perfeito teve início com a cobrança retroativa da contribuição previdenciária do servidor público aposentado.
Como se sabe, o art. 40 da CF, em sua redação original, para efeito de cobrança da contribuição previdenciária de caráter contributivo, só se referia a “servidores titulares de cargos efetivos da União, dos Estados, do Distrito Federal e dos Municípios, incluídas suas autarquias e fundações”.
Somente servidores da ativa são titulares de cargos efetivos. O aposentado não ocupa, nem exerce cargo efetivo. Nem o pensionista.
Por isso, a Lei nº 9.783, de 28-1-1999, que instituiu a contribuição previdenciária, inclusive para os aposentados e pensionistas da União foi declarada inconstitucional pelo STF (Adimc nº 2.010, Adimc nº 2049; Adimc nº 2087; AAGG nºs 393.301 e 393.509, 397.817 e 408.549).
Contudo, o astuto legislador constituinte derivado, por via da Emenda nº 41/2003, alterou a redação do art. 40 da CF incluindo entre contribuintes da contribuição previdenciária os aposentados e pensionistas, mediante introdução da palavra chamativa “solidário”.
Essa palavrinha “solidário” foi bastante realçada pelos julgadores, como se tivesse alguma pertinência com a cobrança dos aposentados e pensionistas.
Ora, o valor “solidariedade” serviu para fundamentar a própria instituição do sistema previdenciário no sentido de que a geração jovem sustenta a geração mais antiga, para ser sustentada, por sua vez, pela nova geração superveniente, e não o inverso: idosos sustentando os mais jovens em nome da “solidariedade” invertida.
O art. 4º dessa Emenda 41/2003, que possibilita a cobrança retroativa da contribuição previdenciária dos aposentados e pensionistas, foi objeto de ADI nº 3.105, relatado originalmente pela Ministra Ellen Gracie.
Em seu brilhante e didático voto a Ministra Ellen Gracie declarava a inconstitucionalidade desse art. 4º guerreado, por ferir o ato jurídico perfeito e por inexistir a contrapartida do benefício específico em obediência ao disposto no art. 195, § 5º da CF que prescreve no sentido de que “nenhum benefício ou serviço de seguridade poderá ser criado, majorado ou estendido sem a correspondente fonte de custeio”. A contrario sensu, “nenhuma fonte nova de custeio pode ser criada sem o correspondente benefício”. Na verdade, essa “contribuição previdenciária” não passava de um duplo imposto de renda para os aposentados e pensionistas vulnerando o princípio da isonomia.
Entretanto, essa acertada tese foi desfocada, a partir do voto do Ministro Cezar Peluso que argumentou no sentido de que ninguém pode ter direito adquirido a não pagar tributos, valendo-se da infeliz expressão inserida na inicial, em trecho inapropriado. O ilustre Ministro proclamou o óbvio! Asseverou que todos devem pagar tributos, afirmando o que é da sabença popular. É fato público e notório que nunca os aposentados e pensionistas deixaram de pagar o imposto de renda! O desvio de rota no julgamento estava traçado de forma irreversível.
A maioria dos Ministros apegou-se a essa argumentação óbvia, como náufragos que se apegam à “tábua de salvação” e julgou a ação improcedente, fazendo vista grossa à escorreita tese da Ministra Ellen Gracie, exposta com lapidar clareza (ADI nº 3.105, Rel. Ministro Ellen Gracie, Relator para Acórdão, Min. Cezar Peluso. DJ 18-2-2005)
Eis aí a primeira vulneração do princípio do ato jurídico perfeito pela Corte Suprema.
O ato jurídico perfeito é mais do que o direito adquirido de que falou o Ministro Cezar Peluso, pois, nos termos do art. 6º, § 1º da LINDB:
“§ 1º Reputa-se ato jurídico perfeito o já consumado segundo a lei vigente ao tempo em que se efetuou.”
A cobrança da contribuição previdenciária dos aposentados representou o desfazimento da situação jurídica consumada ao tempo de sua aposentadoria, para, ato contínuo, refazer aquela situação em condições mais onerosas.
Ofendeu, às escâncaras, o inciso IV, do § 4º, do art. 60 da CF que proíbe a elaboração de Emenda tendente a abolir os direitos e garantias fundamentais, circunstância essa que não passou despercebida pelo arguto Ministro Marco Aurélio, que acentuou com veemência a afronta à cláusula pétrea.
Agora, chegou a vez da relativização da coisa julgada, outro direito fundamental protegido em nível de cláusula pétrea.
Como é do conhecimento de todos, o STF estava discutindo a tese da revisão do acórdão em dois Recursos Extraordinários, ambos, sob a égide da repercussão geral. O RE nº 955227 (Tema 885) tendo como Relator o Ministro Luís Barroso, e o RE nº 949297 (Tema 881) de relatoria do Ministro Edson Fachin.
No primeiro RE discute-se se deve ou não estabelecer um limite temporal dos efeitos futuros da coisa julgada, quando o Plenário do STF vier a decidir em sentido contrário, em sede de controle difuso de constitucionalidade, ou sob o rito de repercussão geral.
No segundo RE de nº 949.297 discute-se se deve ou não estabelecer uma limitação temporal dos efeitos futuros da coisa julgada, quando a Corte Maior vier a se manifestar em sentido contrário, em controle concentrado de constitucionalidade (ADI, ADECON e ADPF).
Com o pedido de destaque formulado pelo Ministro Edson Fachin, em ambos os recursos, o julgamento da matéria voltou à estaca zero. O Plenário virtual já havia alcançado a maioria de votos para reverter a coisa julgada favorável a contribuintes, por ocasião do pedido de destaque feito na sessão do dia 23-11-2022.
Os processos foram incluídos na pauta de julgamento do dia 8 de dezembro de 2022.
A tese em discussão versa sobre reversão pura e simples da coisa julgada, sem prévia rescisão do acórdão envolvendo tributo de natureza contínua, a CSLL.
A doutrina se divide em relação à decisão posterior do STF em sentido contrário ao estabelecido pelo acórdão firmado no bojo de controle difuso de constitucionalidade.
Quando pronunciado sob a égide de repercussão geral, ou no bojo da ação de controle concentrado a maioria da doutrina concorda com a aplicação da nova decisão superveniente por causa do seu efeito erga omnes.
Os defensores da tese de reversão da coisa julgada sustentam que a manutenção dos efeitos da coisa julgada indefinidamente, após a decisão em sentido contrário da Corte Suprema, cria uma situação de desigualdade em relação ao elenco de contribuintes não favorecidos pela decisão judicial, ou seja, alguns contribuintes se veem livres do pagamento da CSLL, enquanto a grande maioria passa a arcar com o ônus dessa contribuição social, concorrendo para a situação de desigualdade econômico-financeira das empresas.
Ora, isso decorre da opção feita pelo contribuinte de impugnar ou não a contribuição social de duvidosa constitucionalidade. Decorre, igualmente, do desfecho desfavorável na acão judicial pleiteada, o que é muito comum.
No passado patrocinamos centenas de ações a favor dos servidores públicos municipais pleiteando a reposição da perda salarial. Obtivemos vitória em 90% dos casos perante o STF. Todavia, em cerca de 10% perdemos ação no STF que deixou de prover o recurso extraordinário, ou reverteu a decisão do tribunal local.
Entretanto, a tese sustentada em todas essas ações foi exatamente igual. Claro que no caso criou-se uma situação de desigualdade entre os que saíram vitoriosos e os que saíram perdedores sustentando a mesma tese. O que fazer? Reverter as decisões? Quais decisões a reverter? Decisões que asseguram o direito à reposição da perda salarial, ou decisões que negaram essas reposições?
Na hipótese, a meu ver, acha-se em confronto a desejada igualização das situações de todos os contribuintes em face da nova decisão do STF, de um lado, e, de outro lado, a proteção do direito fundamental proclamado pela Constituição em nível de cláusula pétrea.
O efeito erga omnes, a nosso ver, não tem muito a ver com as decisões judiciais transitadas em julgado. Do contrário, a coisa julgada deixa de ser uma garantia fundamental protegida por cláusula pétrea.
Uma coisa é certa. A fruição do direito decorrente de coisa julgada não pode ficar na dependência de alterações de entendimentos jurisprudenciais da Corte. Nada garante que determinada tese firmada no controle concentrado e no controle difuso sob a égide de repercussão geral não venha a ser alterada, quando houver renovação da maioria dos Ministros do STF.
Interpretar a Constituição não envolve o poder de desrespeitar a coisa julgada, que nem a Emenda pode superá-la.
O que se poderia facultar no caso é o ajuizamento da ação rescisória com fundamento no § 2º, do art. 535 do CPC:
“§ 8º Se a decisão referida no § 5º for proferida após o trânsito em julgado da decisão exequenda, caberá ação rescisória, cujo prazo será contado do trânsito em julgado da decisão proferida pelo Supremo Tribunal Federal.”
Permitir a reversão automática da coisa julgada é o mesmo que conferir à administração tributária o poder de revisão administrativa da decisão judicial transitada em julgado, um procedimento que não encontra matriz constitucional.
Na hipótese, os contribuintes que lograram êxito em suas ações, caso não haja modulação de efeitos, seriam punidos com multa e juros moratórios por terem alançado vitóra em suas demandas judiciais, gerando efeito kafkaniano.
Enfim, aos poucos, a Constituição Federal vai sendo reescrita pelo STF, interprete máximo da Carta Magna.
SP, 29-11-2022.
*Texto publicado no Portal Migalhas nº 5.489 de 1º-12-2022
Por Kiyoshi Harada