Analisaremos neste artigo uma das questões processuais das mais relevantes, principalmente para os operadores do direito que atuam na área do Direito Tributário, onde há legislações das três esferas políticas aplicáveis no âmbito de seus respectivos territórios, porém que devem harmonizar-se com as normas gerais editadas pela União e que são aplicáveis no âmbito nacional, por expressa determinação constitucional.
Nesse sentido, sempre que o tribunal local aplicar a legislação estadual para dirimir determinada questão tributária submetida ao império da lei complementar federal, a Lei Complementar nº 87/96, por exemplo, que traça as normas gerais aplicáveis ao ICMS, deve-se interpor recurso especial ao Superior Tribunal de Justiça,que tem por missão assegurar a aplicação uniforme de lei federal em todo o território nacional. Aquele Tribunal é o guardião da lei federal, assim como o STF é o guardião da Constituição Federal.
Citemos um exemplo para melhor entendimento da questão colocada. A Lei Complementar nº 87/96 prescreve em seu art. 3º que não incide o ICMS “nas operações interestaduais com energia elétrica, petróleo, inclusive lubrificantes e combustíveis líquidos e gasosos dele derivados quando destinados à industrialização ou à comercialização” (inciso III). Só quando destinado ao consumo é que há incidência do imposto.
Resta claro que tais produtos, quando vendidos para estabelecimento industrial localizado em outro Estado, não haverá incidência do ICMS, quer sejam eles consumidos no processo de industrialização (insumos), quer sejam eles agregados em novos produtos (material secundário).
Pois bem, o Estado de Minas Gerais, por meio de um artifício legislativo, vem exigindo o pagamento do ICMS nas operações com os referidos produtos procedentes de outros Estados sempre que os aludidos produtos não forem eles próprios objetos de industrialização. Em outras palavras, para fazer jus à não incidência do imposto, o lubrificante adquirido de outro Estado deve ser industrializado para gerar outro tipo de lubrificante. Fico a imaginar como seria possível industrializar a própria energia elétrica adquirida!
Aplicada a legislação local em detrimento do disposto na Lei Complementar nº 87/96 surge a oportunidade de interposição do Recurso Especial com fundamento no art. 105, III, a da CF:
“Art. 105 Compete ao Superior Tribunal de Justiça:
…
III – julgar, em recurso especial, as causas decididas, em única ouúltima instância, pelos Tribunais Regionais Federais ou pelosTribunais dos Estados, do Distrito Federal e Territórios, quando adecisão recorrida:
…
b) contrariar tratado ou lei federal, ou negar-lhes vigência.”
A contrariedade ao inciso III, do art. 3º da Lei Complementar nº 87/96, que exonera o pagamento do ICMS relativo ao lubrificante destinado à industrialização em outro Estado, resulta com clareza solar.
Entretanto, para criar dúvidas e incertezas na mente dos operadores do direito, a Emenda Constitucional nº 45/04, a mesma que causou uma avalanche de discussões no âmbito da Justiça do Trabalho, aumentou a competência recursal do STF mediante acréscimo da letra d ao inciso III, do art. 102 da CF que passou a ter seguinte redação:
“Art. 102. Compete ao Supremo Tribunal Federal, precipuamente aguarda da Constituição, cabendo-lhe:
…
III – julgar, mediante recurso extraordinário, as causas decididas em única ou última instância, quando a decisão recorrida:
…
d) julgar válida lei local contestada em face de lei federal.”
A nova competência conferida ao STF para conhecer mediante recurso extraordinário de causas decididas pelos tribunais locais com base na lei local, ignorando a norma de lei federal em sentido diverso, tem trazido dúvidas e incertezas quanto ao recurso cabível: se recurso especial com base na letra a, do inciso III, do art. 105, ou recurso extraordinário com base na letra d do inciso III, do art. 102 da CF.
Afinal, a contrariedade ou negativa de lei federal pode decorrer da aplicação da lei estadual, como tem acontecido em relação à aplicação da legislação mineira do ICMS contra texto expresso da Lei Complementar nº 87/96, hipótese em que cabe ao STJ, como guardião da lei federal, dirimir o conflito.
Instaurada a confusão perante o STJ coube a Supremo Tribunal Federal pacificar a questão para decidir que a competência da Corte Suprema só se afirma quando houver conflito de competência legislativa entre os entes da Federação, que é matéria eminentemente constitucional.[1] Em outras palavras, o STF só conhece do recurso extraordinário interposto de decisão de tribunal regional ou local que tenha aplicado a lei estadual com afastamento da lei federal que adentrou na matéria de competência do legislador estadual.
Normas como a da espécie tem atrapalhado bastante a prestação jurisdicional do Estado, aumentando o volume de processos para discussões de aspectos formais de recursos e de processos com sensível prejuízo da discussão de mérito cada vez mais postergada para as calendas gregas.
É preciso que os operadores do direito que atuam, sobretudo na área do Direito Tributário, atentem bem para as circunstâncias retroexaminadas, a fim de prevenir situações em que o recurso impetrado não seja conhecido por nenhuma das duas Altas Cortes do País.
SP, 20-10-14.
* Jurista, com 28 obras publicadas. Acadêmico, jogos de tiro Titular da cadeira nº 20 (Ruy Barbosa Nogueira) da Academia Paulista de Letras Jurídicas. Acadêmico, Titular da cadeira nº 7 (Bernardo Ribeiro de Moraes) da Academia Brasileira de Direito Tributário. Acadêmico, Titular da cadeira nº 59 (Antonio de Sampaio Dória) da Academia Paulista de Direito. Sócio fundador do escritório Harada Advogados Associados. Ex-Procurador Chefe da Consultoria Jurídica do Município de São Paulo.