Redirecionamento da execução e conflito de jurisprudência

O redirecionamento da execução perante a jurisprudência do STJ é um tema que  não encontra uniformidade perante as turmas julgadoras.

Enquanto as 1ª e 2ª turmas, que lidam com matéria de direito público, promovem o redirecionamento direto e automático contra terceiros, as 3ª e 4ª turmas, que julgam causas de direito privado, não prescindem de prévia instauração do Incidente de Despersonalização da Pessoa Jurídica – IDPJ – para legitimar esse redirecionamento.

Na verdade, tanto o art. 50 do CC, como o art. 133 do CPC exigem como condição para efetuar o redirecionamento a prévia despersonalização da pessoa jurídica:

Art. 50 do CC:

“Em caso de abuso da personalidade jurídica, caracterizado pelo desvio de finalidade, ou pela confusão patrimonial, pode o juiz decidir, a requerimento da parte, ou do Ministério Público quando lhe couber intervir no processo, que os efeitos de certas e determinadas relações de obrigações sejam estendidos aos bens particulares dos administradores ou sócios da pessoa jurídica”.

Art. 133 do CPC:

“O incidente de desconsideração da personalidade jurídica será instaurado a pedido da parte ou do Ministério Público, quando lhe couber intervir no processo”

Art. 135 do CPC:

“Instaurado o incidente, o sócio ou a pessoa jurídica será citado para manifestar-se e requerer as provas cabíveis no prazo de 15 (quinze) dias”

Art. 137 do CPC:

“Acolhido o pedido de desconsideração, a alienação ou a oneração de bens, havida em fraude a execução, será ineficaz em relação ao requerente”.

Como se verifica, tanto o estatuto material, como o estatuto processual vigente não permitem o redirecionamento da execução aos bens dos sócios ou pessoas jurídicas, sem a prévia instauração do Incidente de Despersonalização da Pessoa Jurídica a pedido da parte ou do Ministério Público quando lhe couber intervir no processo.  É o que determinam os preceitos citados em respeito ao princípio do devido processo legal e ao princípio do contraditório e a ampla defesa. “Ninguém será privado da liberdade ou de seus bens sem o devido processo legal” (Art. 5º, LIV da CF). “Aos litigantes em processo judicial ou administrativo, e aos acusados em geral são assegurados o contraditório e ampla defesa, com os meios e recursos a ela inerentes” (art. 5º, LV da CF).

Por isso, a 3ª Turma do STJ não permite a execução de bens de sócios ou de pessoas jurídicas, ainda que coligadas à empresa executada, por meio de redirecionamento sem que haja prévia instauração do IDPJ. É a corrente liderada pela Ministra Nancy Andhighi. A última decisão nesse sentido ocorreu no recurso especial da credora que moveu ação de indenização contra a Unimed do Centro Oeste e Tocantins, mas que queria redirecionar a penhora online para a Unimed Central e todas as outras regionais (Resp nº 1.776.865).

Não se vê razões jurídicas para que as turmas de direito público do STJ se afastem dessa orientação jurisprudencial firmada pelas turmas de direito privado, pois, os princípios do devido processo legal e do contraditório e ampla defesa aplicam-se a todas as áreas do direito, sem exceção.

Dir-se-á que o CTN previu regras diversas. Não é verdade. O CTN não abriga a teoria a responsabilidade objetiva, mesmo porque condenada pelo STF. Os arts. 134 e 135 do CTN exigem o nexo causal entre a conduta comissiva ou omissiva do agente e o surgimento do crédito tributário. Não permite a responsabilização do sócio pelo crédito tributário da empresa-contribuinte, sem a comprovação de sua ação ou omissão na situação configuradora do fato gerador da obrigação tributária. Vejamos:

“Art. 134 Nos casos de impossibilidade de exigência do cumprimento da obrigação principal pelo contribuinte, respondem solidariamente com este nos atos em que intervierem ou pelas omissões de que forem responsáveis:

I – os pais, pelos tributos devidos por seus filhos menores;

II – os tutores e curadores, pelos tributos devidos por seus tutelados ou curatelados;

III – os administradores de bens de terceiros, pelos tributos devidos por estes;

IV – o inventariante, pelos tributos devidos pelo espólio;

V – o síndico e o comissário, pelos tributos devidos pela massa falida ou pelo concordatário;

VI – os tabeliães, escrivães e demais serventuários de ofício, pelos tributos devidos sobre os atos praticados por eles, ou perante eles, em razão do seu ofício;

VII – os sócios, no caso de liquidação de sociedade de pessoas.”

“Art. 135 São pessoalmente responsáveis pelos créditos correspondentes a obrigações tributárias resultantes de atos praticados com excesso de poderes ou infração de lei, contrato social ou estatutos:

I – as pessoas referidas no artigo anterior;

II – os mandatários, prepostos e empregados;

 III – os diretores, gerentes ou representantes de pessoas jurídicas de direito     privado”.

O art. 134, que regula a responsabilidade solidária, proclama com solar clareza que os sócios somente respondem solidariamente com o sujeito passivo nos atos em que intervierem ou pelas omissões de que forem responsáveis (art. 134 caput, inciso VII). Não há responsabilidade por atos urdidos por terceiros.

Igualmente, proclama o art. 135 que a responsabilidade pessoal do sócio se resume aos créditos tributários oriundos da ação ilegal ou contrário ao objeto social, contato ou estatuto praticada pelo referido sócio. Nenhuma responsabilidade há em relação a créditos tributários preexistentes à prática do ato infracional, com vem decidindo o STJ, inovando a legislação vigente.

Donde a ilegalidade do redirecionamento da execução fiscal só pelo fato de a empresa executada não mais se encontrar o local mencionado no cadastro fiscal. Nessa hipótese, as turmas de direito público do STJ criaram a figura jurídica da dissolução irregular da sociedade a caracterizar um ato ilegal.

Ora, a chamada dissolução irregular não depende da vontade do sócio ou do administrador. A situação de insolvência da empresa é uma situação de fato que ocorre em função do mercado, ou da recessão econômica que tingiu o setor explorado pela empresa. Nessa hipótese não resta alternativa senão encerrar de fato as suas atividades, pois para dar baixa regular na Junta Comercial a empresa precisaria apresentar certidões negativas de tributos.

Ainda que pudesse acoimar de ilegal essa situação de fato falta o requisito do crédito tributário decorrente desse ato ilegal, como exige, com solar clareza, o art. 135, caput do CTN.

Mais uma razão para que o redirecionamento seja precedido de prévia instauração do IDPJ, quando o sócio terá a oportunidade de provar a razão da situação de insolvência e que não teve nenhuma participação na situação configuradora do fato gerador da obrigação tributária.

De qualquer forma, o Órgão Especial do STJ deveria uniformizar a jurisprudência conflitante da Seção de direito público (1ª e 2ª Turmas) e da Seção de direito privado (3ª e 4ª Turmas) para a segurança do direito.

SP, 26-10-2020.

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