[…] “a raiz de toda essa confusão está – como insistentemente temos denunciado – na colonial admiração pela cultura européia e na compreensão simplista e acrítica de doutrina jurídica, importada às toneladas e mal digeridas” (Geraldo Ataliba).
Introdução
O ilustre Deputado Aguinaldo Ribeiro, Relator do Grupo de Trabalho da Câmara Federal, elaborou um substitutivo a partir da fusão da PEC 110/19,de autoria do Deputado Luiz Carlos Hauly, que reúne 10 tributos incidentes sobre o consumo em torno do IBS: PIS, PASEP, COFINS, CSLL, CIDE, Salário Educação, IPI, IOF, ICMS e ISS, de um lado, e da PEC nº 45/19, de autoria do Deputado Baleia Rossi, já aprovada na Comissão Especial da Câmara, que reúne em torno do IBS 5 tributos: PIS, COFINS, IPI, ICM e ISS, de outro lado.
Ambas prevêem alíquota linear de 25% e vedam os incentivos fiscais de qualquer espécie e incidem na proibição de deliberar emendas tendentes a abolir a forma federativa do Estado (art. 60, § 4º, I da CF).
Exame do substitutivo do Deputado Aguinaldo Ribeiro
O substitutivo sob análise propõe os seguintes tributos:
a) Contribuição sobre Bens e Serviços (CBS) de competência da União;
b) Imposto sobre Bens e Serviços (IBS) de competência comum dos Estados e dos Municípios;
c) Imposto seletivo incidente sobre bens e serviços prejudiciais à saúde ou ao meio ambiente de competência da União com repasse do produto de sua arrecadação por meio de um Fundo de Participação dos Estados, do DF e dos Municípios.
O IBS dos Estados e Municípios, a ser tributado no destino, tem a mesma estrutura da CBS da União com o mesmo fato gerador, mesma base de cálculo e mesmos contribuintes, o que, na prática, significa que a competência impositiva do IBS será da União. Ele é tributado por fora indo ao encontro do § 5º, do art. 150 da CF assegurando-se a não- cumulatividade plena. É, sem dúvida, um grande avanço nesse particular. Há décadas estamos combatendo a obscura tributação por dentro. Só que a “não cumulatividade plena” para o setor de serviços será inoperante, a menos que inclua como insumos as despesas com a mão de obra, no todo ou em parte.
Outrossim, o IBS será administrado pelo Conselho Federativo a ser instituído por lei complementar, vale dizer, pela União.
Esse Conselho terá competência normativa, fiscalizatória e arrecadatória, bem como a tarefa de fazer a partilha do produto de arrecadação e de dirimir os conflitos que surgirem.
Formalmente cabe aos Estados e Municípios fixar alíquotas relativamente a bens e serviços destinados a seus respectivos territórios, mas sem parâmetros para a dosagem dessas alíquotas. Na prática, é tarefa inviável que acabará em uma grande confusão. Diz o texto, que na ausência de alíquotas estaduais e municipais, como que antevendo a sua inexequibilidade, será aplicada a alíquota padrão. Faltou o essencial que é a competência privativa dos Estados e dos Municípios de criar o imposto, fiscalizar e arrecadar como única forma de preservar a Federação como tal estruturada na Constituição. Dentro do modelo proposto, com um pouco de imaginação, é perfeitamente possível deferir o IBS tanto ao Estado, como ao Município permitindo que o contribuinte aproveite o crédito de um e de outro ente político, como acontece atualmente com o ICMS nas operações interestaduais. Com mais um pouco de ousadia poder-se-ia permitir o crédito também da CBS que é um IBS disfarçado. Basta ler o art. 4º do CTN, segundo o qual a natureza jurídica específica do tributo é dada pelo fato gerador da respectiva obrigação. Isso sim que seria simplificar o sistema tributário! De qualquer forma, o modelo proposto pelo substitutivo sob exame já contempla a bitributação jurídica entre o IBS dos Estados e Municípios, de um lado, e o IBS da União, de outro lado, ainda que com o nome de CBS.
Para superar as críticas contra a alíquota linear de 25% o substitutivo prevê, além da alíquota padrão, alíquotas diferenciadas para determinados bens e serviços a ser definido em lei complementar. Prevê a instituição de cashback como forma de mitigar os efeitos da tributação para as famílias de baixa renda, cabendo à lei complementar definir seus beneficiários.
O substitutivo mantém o regime especial de tributação pelo SIMPLES, bem como a imunidade da Zona Franca de Manaus. Cria o Fundo de Desenvolvimento Nacional em substituição aos incentivos fiscais voltada para a redução de desigualdades sócio-econômicas entre as várias regiões do País. Mantém, também, os benefícios fiscais do ICMS convalidados pela Lei Complementar nº 160/2017.
Preconiza ainda:
a) tributação progressiva do ITCMD (propomos a revogação do inciso III, do § 1º, do art. 155 da CF que vem impedindo de os Estados tributar em razão da jurisprudência do STF);
b) confere correta interpretação ao art. 155, III da CF incluindo no fato gerador do IPVA o veículo automotor marítimo e aéreo, porque o STF restringiu a incidência do imposto ao veículo automotor terrestre, louvando-se na definição dada pelo Código de Trânsito Brasileiro que se limita a regular o trânsito em vias terrestres em todo o território nacional;
d) permite o aumento da base de cálculo do IPTU por decreto do Executivo, vulnerando o princípio da legalidade tributária
O centralismo fiscal da União salta aos olhos, não só pelo aumento na partilha de impostos, como também pela expansão de sua competência legislativa tributária alcançando as esferas estaduais e municipais. O Conselho Federativo, na prática, para ser exequível, deverá funcionar como se fosse um órgão da União até mesmo para harmonizar as administrações dos dois tributos, a CBS da União e o IBS dos Estados/Municípios que têm a mesma estrutura.
A noção de competência tributária é una e indivisível, implicando o poder de criar o tributo, fiscalizar e arrecadar. Somente a fiscalização e arrecadação podem ser delegadas, nunca o poder de instituir o tributo.
Logo, o substitutivo apresentado fere o princípio federativo. A Federação Brasileira é impar no mundo, caracterizada pela coexistência de três entidades políticas juridicamente parificadas, pelo que nenhum modelo importado, notadamente, dos países europeus, serve para o Brasil. Na redação do substitutivo faltou a mão do jurista. O modelo proposto pelo substitutivo poderia ser mantido com o IBS dual: um da União como já previsto e outro do Estado, deixando de fora da reforma o ISS municipal, já que o setor de serviços é incompatível com o modelo tributário sob exame.
Uma reforma estrutural como a pretendida, em que pese o meritório esforço dos nobres Deputados, somente poderá vir no bojo de uma Assembleia Nacional Constituinte exclusiva que dará a forma de Estado e o sistema de governo.
Alternativas
O momento não é de partir para um novo sistema tributário. Se o conceito de ICMS levou 23 anos para pacificar, o de IBS levará, no mínimo, tempo igual ou mais, por ser um conceito em aberto. Jogar fora um sistema que a jurisprudência dos tribunais levou 35 anos para decantar e começar tudo de novo não é o caminho.
A alternativa que resta é a de fazer reformas pontuais no sistema tributário vigente, que é o único compatível com a impar, heterogênea, complexa e centrífuga Federação Brasileira. Ao tempo do Brasil Império havia um único dispositivo versando sobre tributos, prescrevendo o princípio da legalidade dos impostos (art. 36, 1º da Constituição de 1824). Nada mais.
Essas reformas pontuais consistem em:
I – Vedar: a tributação por dentro; b) a tributação antecipada por fato gerador presumido; c) a inclusão do valor de um tributo na base de cálculo de outro tributo; d) a tributação não cumulativa do tipo PIS/COFINS vigente; e) a edição de medida provisória em matéria tributária;
II – Limitar a edição de atos normativos referidos no art. 100 do CTN para uma vez por ano, relativamente a um mesmo tributo;
III – Exigir a definição do fato gerador da contribuição social por lei complementar.
Tudo isso pode ser feito em menos de setenta palavras. Mais, não é preciso!
Feitas essas simplíssimas reformas pontuais, cerca de 90% das demandas judiciais em curso desaparecerão, com toda certeza. Não é preciso destruir os alicerces do sistema tributário vigente para simplificar e reduzir o nível de imposição sobre o consumo.
É um equívoco muito grande supor que a diversidade de impostos cause complexidade. Basta apenas um tributo do tipo PIS/COFINS não cumulativo para tornar complexa e confusa a legislação. A diversidade de impostos existe para distribuir o peso da carga tributária para os diferentes segmentos da sociedade. Não faz sentido, por exemplo, um advogado, um juiz, um policial ter que pagar o IPI e ICMS. O único imposto universal é o incidente sobre rendas e proventos de qualquer natureza. A alegada complexidade com 27 legislações do ICMS e de mais de 5.570 legislações do ISS, também, não se sustenta. Existem a lei de regência nacional do ICMS (Lei Complementar nº 87/96) e do ISS (Lei Complementar nº 116/2003) que traçam normas gerais aplicáveis nacionalmente.
Outrossim, a alegação de que o atual sistema concentra a imposição tributária sobre o consumo onerando a classe pobre não é motivo para remexer na estrutura do sistema tributário vigente. Basta providência infraconstitucional para dosar o aspecto quantitativo dos impostos e contribuições sociais incidentes sobre o consumo. Aliás, as contribuições do PIS/COFINS, que de contribuição só ostenta o nome, poderiam ser eliminadas mediante a supressão da letra b, do inciso I, do art. 195 da CF, ou mediante a simples revogação das respectivas leis instituidoras. A CSLL, também, poderá ser suprimida incorporando a previsão de sua arrecadação no IRPJ. A destinação do produto de sua arrecadação é matéria que se insere no âmbito do Direito Financeiro.
O sistema tributário nacional é um microssistema jurídico inserido no sistema jurídico global que é a Constituição. Por isso, suas normas devem harmonizar-se com os preceitos constitucionais. Importar modelos de outros países, notadamente, dos da comunidade européia, jamais dará certo.
SP, 3-7-2023.
* Texto publicado no Migalhas, edição nº 5.635 de 4-7-2023.