Ante o descontrole da coisa pública que tomou conta do País permitindo o desvio sistemático das verbas fixadas na Lei Orçamentária Anual aprovada pela sociedade, por via do Parlamento, a população saiu às ruas no exercício legítimo da cidadania.
Por conta disso o Parlamento Nacional, eco de ressonância da vontade popular, como se costumava dizer no passado, deu rápidas respostas, não para sanar os males que afligem a nossa sociedade, mas para desviar o foco dos movimentos populares. Igualmente, as propostas de realização de plebiscito ou de referendo popular não passam de cortina de fumaça.
Assim, rejeitou-se celeremente a PEC nº 37 que estava abundando, mas continuam dando guarida aos parlamentares que foram empossados após a condenação sofrida perante o STF. Aprovou-se o projeto de Lei nº 41/2013, destinando para os setores da saúde e da educação os recursos provenientes dos royalties do petróleo, no percentual de 25% e de 75%, respectivamente.
Na pressa, essas vinculações acabaram atingindo as receitas pertencentes aos Estados e aos Municípios em total desacordo com os comandos constitucionais contidos no § 2º, do art. 198 e no art. 212 da CF, os quais prescrevem que Estados e Municípios devem destinar recursos mínimos aí fixados para os setores da saúde e da educação, respectivamente. A União deve fazer a destinação de seus recursos e não a dos de outras entidades políticas. Agora, uma medida provisória espicha o curso de medicina de seis anos, que já é longo, para oito anos, isso sem falar na importação de mil médicos cubanos. Seria o mesmo que importar cozinheiros cubanos para acabar com a fome no nosso País.
Outrossim, o Prefeito do Município de São Paulo já está reivindicando a utilização dos recursos da CIDE para subsidiar a tarifa de ônibus, o que importará no desvio da finalidade prevista na Constituição. A instituição da CIDE foi autorizada pela Constituição para ampliar três finalidades, dentre as quais o financiamento de programas de infraestrutura de transportes (ar. 177, § 4º II, c).
Programas de infraestrutura que envolvem a expansão da malha viária, a execução de corredores de ônibus, a construção de pontes e viadutos etc., nada têm a ver com o custeio da tarifa de ônibus. Aliás, a prestação do serviço essencial de transporte de passageiros deve retornar ao regime constitucional previsto no art. 30, V da CF. Atividade meramente lucrativa é incompatível com a natureza do serviço público essencial que deveria estar sendo prestado diretamente pelo poder público, ou pelo regime de concessão ou de permissão na acepção jurídica do termo, e não por empresários que ganham a maior parte da remuneração do serviço público prestado na base do kilômetro rodado, com ou sem passageiro.
Ora, os problemas graves apontados nas manifestações de ruas estão no desvio de verbas públicas que não estão cumprindo as finalidades para as quais foram destinadas por decisão do Parlamento, vale dizer, pela vontade da sociedade pagante de tributos. Cabe ao Congresso Nacional exercer o controle e fiscalização da execução orçamentária com auxílio do Tribunal de Contas da União, sem prejuízo do controle interno e do controle social.
Como muito bem sustentado por Dora Kramer não adianta aumentar as verbas orçamentárias se não está havendo a aplicação dos recursos correspondentes para os setores contemplados no orçamento. Em artigo publicado no O Estado, dia 2-7-2013, p. A6 a conhecida articulista afirma que apenas 39,3% dos R$ 50,6 bilhões orçados foram gastos na área de saúde; dos R$ 53,3 bilhões disponíveis para a área de educação apenas 61,3% foram aplicados; para o setor de transportes dos R$ 118,5 bilhões disponíveis apenas 60,5% foram utilizados.
Pergunta-se, para onde foram as diferenças faltantes? Certamente foram para outros setores não aprovados, nem previstos na LOA. Esses recursos assim desviados quase sempre não consultam aos interesses da sociedade, e nem sempre têm destinação pública. Para quem tem conhecimento rudimentar de direito orçamentário sabe que a única hipótese de faltar recursos financeiros correspondentes às verbas consignadas na Lei Orçamentária Anual é a ocorrência da hipótese de arrecadação da receita ficar aquém daquela estimada. E todos nós sabemos que o governo sempre arrecada mais do que o montante estimado, o que vem ensejando sucessivas aberturas de créditos adicionais suplementares mediante utilização de recursos provenientes do excesso de arrecadação.
Cabe ao Congresso Nacional, – ao invés de aprovar outros instrumentos legislativos que não resolvem os problemas apontados como, por exemplo, a qualificação do crime de corrupção como sendo um crime hediondo que, por si só, não aumenta a eficiência da aplicação da lei penal, – cumprir e fazer cumprir os dispositivos constitucionais e legais em vigor. Deveria estar acompanhando e analisando o relatório mensal da arrecadação de tributos de que trata o art. 162 da CF, impositivo para as três entidades políticas, até mesmo para que o Senado Federal possa cumprir a sua missão de avaliar periodicamente a funcionalidade do Sistema Tributário Nacional e o desempenho da administração tributária da União (art. 52, XV da CF). Da mesma forma, deveria estar examinando o relatório resumido da execução orçamentária bimestral de que trata o § 3º, do art. 165 da CF, igualmente direcionado para os três entes políticos, procedendo ao confronto do montante arrecadado e do montante gasto no bimestre por conta das despesas fixadas nas diversas dotações, apontando os desvios ocorridos e propondo os respectivos mecanismos de correção.
Se isso estivesse sendo feito nas esferas estaduais e municipais com relação às verbas consignadas ao Judiciário para pagamento de precatórios, nos termos das disposições constitucionais permanentes (não no regime do calote representado pela repulsiva EC n٥ 62/09) não estaríamos, hoje, convivendo com uma montanha de precatórios “impagáveis” no dizer dos cínicos governantes. Como as instituições públicas não funcionam, os mecanismos de controle e fiscalização da execução orçamentária previstos na Constituição e na Lei de Responsabilidade Fiscal são inócuos, e os governantes continuam imunes às sanções de natureza político-administrativas pelas infrações cometidas ao longo do tempo, sempre à espera de novos calotes constitucionais a serem patrocinados, a exemplo daquele que resultou na sepultada EC nº 62/09 de autoria da conhecida dupla, um deles guindado ao mesmo cargo que hoje ocupa sendo alvo de repulsa popular.
Sem controle e fiscalização da execução orçamentária o aumento de verbas para os setores reclamados pela população só servirá para aumentar o nível de pressão tributária sem qualquer benefício para a sociedade em geral. Quanto maior o peso da arrecadação, mais depressa desaparecem os recursos arrecadados pelos ralos que continuam em aberto. É preciso reverter essa perversa cultura de que o Orçamento Anual é peça de ficção. Ele é, na verdade, um instrumento eficaz do exercício da cidadania. Não é por outra razão que consignei na 1ª edição do meu livro Direito financeiro e tributário, nos idos de 1995, hoje na 22ª edição o seguinte: Onde falha o Direito Financeiro o Direito Tributário surge com vigor redobrado. É verdade: quanto maior o descontrole das despesas públicas, maior é o peso da carga tributária.
No fundo, a revolta popular tem suas raízes no descontrole da execução orçamentária, porque quando o Parlamento aprova o Orçamento Anual significa que a sociedade está aprovando em bloco todas as despesas fixadas nesse Orçamento, não se permitindo os desvios de recursos financeiros destinados à saúde, à educação, aos transportes coletivos, à segurança pública etc. Na verdade, a população saiu às ruas demonstrando insatisfação contra a classe política em geral, exigindo honestidade de propósitos, transparência e eficiência dos serviços públicos e o fim da corrupção. A reivindicação popular diz respeito à reforma do político e não à reforma política. Não cabe à população idealizar mecanismos eletivos que resultem apenas na eleição dos mais probos, operosos, patriotas e produtivos. A sociedade quer e exige que os eleitos representem efetivamente os eleitores e que façam com que os órgãos e instituições públicas funcionem efetivamente, cumprindo as finalidades que justificaram a sua criação que não são as de remunerar regiamente os ocupantes de intermináveis cargos em comissão.
Por isso, o pretendido plebiscito da forma como o governo quer é mais um desperdício de recursos públicos que a população tanto condena. Descobrir o melhor meio de governar é responsabilidade do governante. Quem não tem um bom plano de governo, por ignorar a realidade do País, nem deve ser candidato.
A única resposta correta às manifestações populares a ser dada é a de enxugar a máquina administrativa, gastar mais nas despesas de investimentos e menos nas despesas de custeio, enfim, fazer com que as receitas públicas se destinem exclusivamente para o cumprimento dos fins do Estado que, em última análise, resume-se na realização do bem comum. Para tanto é preciso que o Orçamento Anual seja fielmente executado tal como aprovado pela sociedade pagante. Por ironia do destino o partido político que está no Poder, que mais descontrole orçamentário tem provocado e que vem sendo camuflado por condenáveis artifícios contábeis, é exatamente aquele que lançou a salutar ideia de orçamento participativo que acabou sendo positivado nos arts. 43 e 44 da Lei nº 10.257/01 (Estatuto da Cidade) que instituíram o mecanismo de gestão orçamentária participativa no âmbito municipal.