A consulente declarou de utilidade pública para fins de desapropriação amigável uma área de terras com 126.138,03ms2 situada em …., de propriedade de herdeiros e viúva de João Pires Neto, descrita e confrontada no Decreto nº 12, de 5 de outubro de 1994, para fins de instalação de Parque Industrial.
A Lei municipal de nº 600, de 5 de outubro de 1994, por sua vez, autorizou a aquisição da área descrita e confrontada no art. 1º do Decreto 12/94 mediante abertura de crédito adicional suplementar no valor de R$ 11.250.000,00 (onze mil duzentos e cinquenta mil reais), com o fim específico para “Implantação de Parque Industrial”.
Por escritura pública de desapropriação amigável lavrada perante o Escrivão de Paz, Tabelião de Notas e Anexos do Município de …. datada de 10 de outubro de 1994, Livro nº 59, fls. 60/61v. a que compareceram a viúva do proprietário falecido e todos os herdeiros devidamente qualificados, o imóvel descrito e confrontado no Decreto nº 12/94 foi definitivamente incorporado ao patrimônio do poder público local por preço certo e ajustado de R$ 11.250.000,00 (onze mil, duzentos e cinquenta mil reais) a título de pagamento do preço da justa indenização.
O imóvel desapropriado composto de duas áreas (de 72.500ms2 e de 53.638ms2) perfazendo a área total de 126.138,03ms2 estava inscrito no INCRA sob nº 794.024.012.610-6 e registrado na matrícula n٥ 03689 em nome de João Pires Neto (falecido) e s/m Anezia Cavalheiro Pires perante o Cartório de Registro de Imóveis da Comarca de Rio Negro – Estado do Paraná. Com a desapropriação houve alteração no número da matrícula, sendo certo que a escritura de desapropriação foi registrada sob nº 1 na matrícula 11079 do mesmo Registro Imobiliário.
Apenas parte da área desapropriada de 3.328,30 ms2 foi utilizada para instalação do Parque Industrial. A outra área parcial foi utilizada na implantação de loteamentos, para formação de ruas e conjuntos habitacionais. O restante da área de 12.042,08 m² que não deveria ter sido desapropriada porque pertencentes a terceiros ficou sem destinação dada e não recebeu qualquer investimentos.
Essas áreas não utilizadas seriam aquelas pertencentes àqueles que haviam adquirido em porções menores, abaixo do módulo rural legalmente permitido, por instrumento particular não levado a registro, nos idos de 1989 e 1991, portanto, antes da desapropriação amigável, que se deu em 10 de outubro de 1994. No curso do tempo essas áreas foram sendo revendidas mesmo após a desapropriação.
Exatamente porque não registrados os instrumentos aquisitivos e nem seria passiveis de registro por implicar desmembramento de imóvel rural em desacordo com a legislação de regência da matéria, não foram chamados na escritura de desapropriação amigável e por conseguinte não receberam a parcela da indenização que lhes cabia. Presume-se, contudo, que os desapropriados sabiam desse fato.
Mas, ao que se depreende da consulta formulada ao Ministério Público do Estado do Paraná, a consulente, também, tinha conhecimento desse fato, tanto é que deixou intocável essas áreas possuídas pelos adquirentes por títulos não registrados, além de ter elaborado um mapa em que se destacaram as três áreas que teriam sido alienadas antes da desapropriação.
Em 24-12-1999 consulente promoveu o desmembramento das áreas desapropriadas resultando na cisão da matrícula nº 11.079 em 9 outras matrículas, sendo 4 delas destinadas ao arruamento e 5 delas destinadas a lotes urbanos.
Desses 5 novos lotes, 3 deles se referem a imóveis que haviam sido alienados a terceiros antes da desapropriação, quais sejam, os Lotes 1 com 1.210,50 m²; Lote 2 com 7.999,42 m² e Lote 3 com 2.832,16 m², cuja soma corresponde aos exatos 12.042,08 ms2 pertencentes a não expropriados.
Esses lotes, por sua vez sofreram desmembramentos resultando em lotes menores com alguns deles já edificados, mediante a expedição do competente alvará pelo órgão competente da consulente.
Para regularizar essa situação anômala a consulente consulta-nos quanto à possibilidade jurídica de efetuar a retrocessão das áreas não utilizadas pelo poder público. Exibe a documentação pertinente aos fatos narrados formulando os quesitos abaixo:
1) No caso da desapropriação promovida pela consulente é possível resolver a ocupação existente através de retrocessão administrativa por iniciativa do Município ou dos expropriados ou dos atuais ocupantes, tendo em vista todo o levantamento realizado que comprova que a ocupação existe no local desde data anterior à desapropriação, e que a mesma veio mantendo-se de forma pacífica e sem oposição do poder público há mais de 20 anos?
2) É possível o gestor municipal, em processo administrativo devidamente documentado, reconhecer a ocupação pacífica e sem oposição durante todo esse período, e com base nas provas testemunhais, que informam que houve um equívoco na delimitação da área a ser desapropriada, conceder o pedido de retrocessão administrativa?
3) Quais seriam os riscos para o gestor perante os órgãos de controle (Ministério Público, Tribunal de Contas) se estes entenderem que o ato caracteriza má gestão do patrimônio público?
4) Sendo possível proceder com a retrocessão, o antigo expropriado deverá restituir o valor indenizado corrigido monetariamente ou deverá ser cobrado o valor atual de venda do imóvel?
5) Havendo possibilidade de proceder com a retrocessão, a mesma pode ocorrer diretamente aos atuais ocupantes ou deve ser realizada para os antigos proprietários?
6) Existe outro meio legal para transmitir os imóveis ocupados aos posseiros de boa fé?
7) Caso não seja recomendada a realização de retrocessão, o Município poderia realizar a alienação dos imóveis diretamente para os atuais ocupantes dos terrenos?
8) A alienação, neste caso, poderia se dar por inexigibilidade de licitação?
9) Caso seja necessário procedimento licitatório na modalidade concorrência, haveria possibilidade de ser feita com direito de preferência aos atuais ocupantes dos lotes?
10) Quanto ao preço de venda (caso seja necessário instaurar licitação), pode ser utilizado o valor venal do cadastro imobiliário (IPTU, ITBI)?
11) O valor a ser pago (corrigido monetariamente ou valor atual de venda), pode ser parcelado pela administração?
12) O valor pago pelos ocupantes até o momento a título de IPTU pode ser abatido do valor pago pela retrocessão ou venda com direito de preferência?
13) Caso seja afirmativa a resposta da pergunta anterior, os valores pagos a título de IPTU cujo eventual direito a restituição já estejam prescritos, pode ser abatido do valor pago pela retrocessão ou venda com direito de preferência?
14) Para aqueles lotes onde a municipalidade tenha emitido alvará de construção, é permitida venda com direito de preferência, se não for possível retroceder?
15) É possível a municipalidade aceitar administrativamente pedido de indenização pelas edificações realizadas sobre estes imóveis, uma vez que foram emitidos alvarás de construção em favor dos ocupantes?
Parecer
Antes de responder aos quesitos formulados pela consulente impõem-se breves considerações em torno do instituto da desapropriação e também da retrocessão à luz da situação fática existente para, ao final, propormos a solução jurídica para superar o impasse criado por equívocos cometidos no passado.
A desapropriação só pode fundar-se no interesse público que se desdobra em necessidade ou utilidade pública, interesse social e interesse social para fins de reforma agrária, além da erradicação de área onde se encontrar cultivo ilegal de plantação psicotrópica, sendo esta última desapropriação de natureza compulsória.
No caso sob consulta esse interesse público enquadra-se na modalidade de necessidade ou utilidade pública. O Decreto-Lei nº 3.365/41, abolindo a dicotomia necessidade pública/utilidade pública elencou em seu art. 5º os casos de utilidade pública nas alíneas “a” a “p”. A última alínea faz referência a “demais casos previstos por leis especiais”, pelo que a enumeração do art. 5º deixou de ser taxativa.
A Lei Municipal de nº 600/94, que abriu crédito adicional especial no valor de R$ 11.250,000,00 (onze mil, duzentos e cinquenta mil reais) para desapropriação da área de 126.138,05 m² com o fito de promover a implantação de Parque Industrial, satisfaz o requisito legal exigido pela lei básica de desapropriação.
Outrossim, a parcela da área desapropriada destinada à implantação de loteamentos, para formação de ruas e conjuntos habitacionais tem enquadramento na letra “i”, do art. 5º do Decreto–lei nº 3.365/41 pelo que ininvocável a tredestinação.
Restou uma área não utilizada até agora (12.042,08 ms2) objeto da pretendida retrocessão que examinaremos mais adiante.
A desapropriação foi precedida de todas as formalidades legais e foi efetivada mediante acordo, no prazo quinzenal, de conformidade com o art. 10 da lei de regência da matéria. Dada à peculiaridade do caso –proprietário falecido e existência de áreas alienadas por instrumento particular sem registro – era aconselhável a desapropriação judicial, hipótese em que o preço depositado ficaria em depósito judicial (art. 33) condicionado o seu levantamento à prova de propriedade, de quitação de tributos e publicação de edital para conhecimento de terceiros (art. 34).
No caso de desapropriação judicial não há dúvida que quaisquer ônus ou vícios que recaem sobre o domínio ficam sub-rogados no preço da indenização a ser disputado pelas partes interessadas (parágrafo único, do art. 34).
Na desapropriação amigável entendo que não é de ser aplicado o art. 31 da lei básica de desapropriação segundo o qual “ficam sub-rogados no preço quaisquer ônus ou direitos que recaíam sobre o bem expropriado”.
A respeito dessa questão escrevemos:
“Nessa modalidade de desapropriação não cabe, em nosso entender, invocar a teoria do modo originário de aquisição, segundo a qual o Poder Público receberia o bem expropriado livre dos vícios e expurgado dos ônus que o gravam, os quais se sub-rogariam no preço da indenização. É que, como veremos quando tratamos de desapropriação judicial, inexiste base legal para sustentação dessa teoria, na chamada desapropriação amigável. Nessa modalidade de desapropriação, o risco de pagar a justa indenização a quem não é dono do bem objetivado é do poder expropriante”.[1]
Entretanto, a incorporação do imóvel ao patrimônio público deu-se em 1994 estando, portanto, prescrita a ação anulatória por parte dos proprietários sem título registrado, quer em face do Código Civil vigente, quer em face do estatuto material antecedente.
Igualmente prescrita a eventual ação reivindicatória ainda que os adquirentes das áreas, antes da desapropriação, fossem titulares de direito real, isto é, tivessem o título aquisitivo devidamente registrado, o que não aconteceu até hoje, apesar de manterem a posse das áreas que vem sendo respeitada pela consulente, atual titular de domínio.
Poder-se-á aventar a hipótese de usucapião dessas áreas que a jurisprudência vem admitindo em alguns casos semelhantes à hipótese aqui versada, tendo em vista a função social da propriedade, apesar da expressa vedação prevista no art. 183, § 3º da CF e no art. 102 do Código Civil que devem ser interpretados no contexto do ordenamento jurídico global.
Nesse sentido transcreve-se a título ilustrativo o julgado do Tribunal de Justiça do Estado de São Paulo:
“ACÓRDÃO
Usucapião – Bem público – Distrito Industrial de Campinas – Terrenos desapropriados e vendidos para construção de indústrias – EMDEC constituída para proceder à formação do Distrito Industrial – Afastamento da alegação de impossibilidade jurídica do pedido, em razão da desafetação dos bens imóveis desapropriados – Possibilidade de alienação – Recurso provido por maioria.
Vistos, relatados e discutidos estes autos de APELAÇÃO Nº 9172311-97.2007.8.26.0000, da Comarca de Campinas, sendo APELANTES Coppersteel Bimetalicos Ltda e outros e APELADOS Empresa Municipal de Desenvolvimento de Campinas S.A. – EMDEC e Municipalidade de Campinas.
ACORDAM, em Nona Câmara de Direito Privado do Tribunal de Justiça, por maioria de votos, em dar provimento ao recurso, vencido o relator que fará declaração de voto.
Trata-se de ação de usucapião extraordinária ajuizada por Coppersttel Bimetálicos Ltda. Contra Município de Campinas e Empresa Municipal de Desenvolvimento de Campinas S.A – EMDEC. Diz a inicial que a autora completou os requisitos necessários ao reconhecimento da prescrição aquisitiva em relação ao imóvel objeto de matrícula 120.513, do 3º CRI da Comarca de Campinas, pretendendo seja declarada sua usucapião.
Citados, os corréus sustentaram que não se configurou a usucapião, pois não se admite a prescrição aquisitiva em relação a bens públicos.
O Ministério Público declinou de intervir no feito (fls. 395).
O processo foi julgado extinto, sem julgamento de mérito, por impossibilidade jurídica do pedido, nos termos do artigo 267, VI, do Código de Processo Civil (fls. 401).
Insatisfeita, apela a autora, insistindo na possibilidade de reconhecimento da usucapião no caso dos autos, juntando vários julgados neste sentido.
Recurso tempestivo, preparado e contrariado a fls. 576.
É o relatório.
Cinge-se a controvérsia em saber se o pedido da recorrente é ou não possível juridicamente.
A sentença, acatando a tese da imprescritibilidade do bem público de qualquer natureza, extinguiu o processo sem apreciação do mérito, entendendo ser o pedido impossível juridicamente.
Insiste a apelante na possibilidade de haver usucapião de imóvel contido em área desapropriada pela EMDEC, registrado no Cartório Imobiliário em nome do Município de Campinas (fls. 263), bem público cuja desafetação legal se destinou a implementar o Distrito Industrial de Campinas (fls. 136).
Afirma que os artigos 183, § 3º e 191, § único, da CF, não deveriam ter sido aplicados literalmente, pois à usucapião é o único meio de que a Coppersteel dispõe para adquirir o domínio dos lotes descritos na inicial. Alega que as outras opções possíveis (adjudicação compulsória e ação de obrigação de fazer) esbarrariam na falta de CND. Relata que a empresa está instalada na área há mais de 30 anos, conta com 300 funcionários e desempenha relevante função social. Diz que não é invasora de bem público nem posseira sem justo título, tendo participado de plano de desenvolvimento patrocinado pelo Poder Público. Defende que a propriedade deve atender à sua função social e que se o próprio Município “desafetou” a área para comercializá-la e a recorrente pagou pelos lotes, não há motivos para que não se reconheça a prescrição aquisitiva. Assevera que a desapropriação por interesse social deveria ter sido concluída em dois ano, mas tal prazo não foi observado, e que os artigos constitucionais já mencionados devem ser interpretados de forma a garantir o bem-estar social, de acordo com as exigências fundamentais de ordenação da cidade traçadas em seu plano diretor (fls. 414).
Tem razão a apelante quando afirma ser o pedido juridicamente possível, devendo ser afastada a decisão de primeiro grau que julgou o feito extinto sem análise de mérito.
Neste sentido, o ensinamento de Benedito Silvério Ribeiro, em acórdão referente a caso idêntico proferido na Apelação Cível nº 613.383-4/6-00, em 11 de março de 2009:
“Usucapião – Bem público – Distrito Industrial da Campinas (DIC) – Áreas de terrenos desapropriadas e vendidas para construção de indústrias – Empresa municipal de economia mista (EMDEC) constituída para proceder à formação do sinalado Distrito Industrial – Alegação de impossibilidade de usucapião de bem público – Afastamento, uma vez, desafetados os bens imóveis desapropriados, daí poderem ser alienados.
ITBI – Usucapião é aquisição originária, não havendo transferência da anterior proprietário, daí não ser exigível, imposto de transmissão de bens imóveis.
Posse – A data do início da posse é fundamental na ação de usucapião – A posse ad usucapionem se perfaz após a quitação do compromisso de compra e venda, quando se evidencia animus domini.”
E ainda, o posicionamento de Donega Morandini (Apelação nº 553.457-4/8-00), em caso semelhante:
“Ação de usucapião. Alegação de que a área objeto da demanda é pública, não passível da aquisição pela usucapião. Área já desafetada, não mais integrando o patrimônio público. Possibilidade de aquisição pela usucapião. Expressa manifestação da Municipalidade no sentido de que a área não pertence ao domínio público. Precedente deste Tribunal em caso parelho. Sentença mantida. Apelo improvido.”
A área descrita na inicial fazia parte do denominado Distrito Industrial de Campinas (DIC). A Prefeitura Municipal, através do Decreto 4.517, de agosto de 1974, desapropriou e desafetou essa área destinada à formação desse Distrito, sendo os lotes destinados para revenda à indústria.
Se assim é, o bem desapropriado passou a compor o patrimônio disponível da Municipalidade, mas ocorreu a desafatação, podendo, dessa maneira, ingressar no patrimônio particular das empresas que tinham interesse na formação do Distrito Industrial de Campinas.
Com vistas à implantação desse Distrito, foi atribuída competência à sociedade de economia mista EMDEC para a execução do Plano Comunitário Municipal e esta empresa compromissou a área usucapienda à antecessora da usucapiente, que transferiu e cedeu o lote à Cooperativa Erico Bimetálicos Ltda., hoje denominada Coppersteel Bimetálicos Ltda., tudo indicando que houve o pagamento do preço ajustado.
Assim, o lote descrito na inicial não é mais público, em razão da ocorrência de desafetação, como bem explicou o desembargador Silvério Ribeiro, que muito se dedicou ao estudo desta área de pesquisa e escreveu tratado sobre o assunto:
“As áreas do Distrito Industrial tiveram, assim, origem em desapropriações promovidas pela EMDEC e foram por esta compromissadas à venda, uma vez que desafetadas, sendo validos os negócios efetuados, que são perfeitos e acabados.
Portanto, não há falar em imprescritibilidade de bem público municipal, de vez que já saíra de seu patrimônio indisponível a gleba destinada ao Distrito Industrial de Campinas.
O compromisso de compra e venda é válido e deve produzir efeitos na órbita do direito.
(…) A única obrigação que sobrou para o poder público é a de outorgar o título definitivo de propriedade à usucapiente.
(…) A alegação de impossibilidade jurídica, em razão de constituir o imóvel usucapiendo parte do patrimônio do Município, não tem fundamento jurídico que lhe ampare, haja vista que o bem foi desafetado e podia ser perfeitamente alienado, como de fato o foi” (5ª Câmara de Direito Privado, Relator Silvério Ribeiro, julgamento em 11 de março de 2009)
Diante dos precedentes deste Tribunal e dos demais julgados apresentados pela recorrente, não se pode negar que o pedido é viável.
Relativamente à posse longeva e com intenção de dono, da autora, nenhuma controvérsia existe.
Bem por isso, fica reformada a sentença e julga-se procedente a ação de usucapião para reconhecer a propriedade da empresa autora.
Ficam invertidos os ônus da sucumbência.
Presidiu o julgamento o Desembargador GRAVA BRAZIL, com voto, e dele participou o Desembargador JOÃO GARCIA (relator com voto vencido).
São Paulo, 24 de maio de 2011.
JOSE LUIZ GAVIÃO DE ALMEIDA
Relator Designado”
No caso sob consulta, os proprietários por títulos não registrados adquiriram as áreas antes da desapropriação e não foram atingidos por ato expropriatório não recebendo, em consequência, qualquer indenização do Poder Público. Porém, eles mantêm ininterruptamente, até hoje, a posse dessas áreas, sendo certo que alguns deles promoveram a edificação do terreno com o Alvará regularmente expedido pelo órgão público competente da consulente. Apenas formalmente estão essas áreas incorporadas ao patrimônio público na condição de bem dominical por força do tempo que apagou o vício contido na escritura de desapropriação amigável.
Assim, não sendo bem público de uso comum, nem de uso especial e somado à circunstância de que aqueles proprietários sem títulos registrados exercem a posse das áreas por mais de vinte anos, por si ou sucessores, com plena anuência da consulente, razoável se mostra a ação de usucapião como forma de regularizar a situação anômala em que se encontram as aludidas áreas, por culpa recíproca, particulares e Poder Público expropriante.
Mas, a consulente indaga quanto à possibilidade de retrocessão dessas áreas incorporadas ao patrimônio público muniicipal.
Quando a administração pública não conferir ao imóvel desapropriado a destinação pública que a motivou, nem se utilizar do imóvel desapropriado para qualquer obra ou serviço de interesse público poderá haver a retrocessão. E essa retrocessão será cabível quer se trate de desapropriação judicial, quer se trate de desapropriação amigável, uma vez presentes os requisitos legais.
Segundo escrevemos:
“O desvio na destinação do imóvel desapropriado enseja a retrocessão que outra coisa não é senão a reincorporação do bem expropriado ao patrimônio do ex-proprietário, mediante devolução da indenização recebida, por inexistir o vinculo entre o sacrifício suportado pelo particular e o interesse público invocado como razão de desapropriar.” [2]
O próprio conceito de retrocessão impossibilita a devolução do bem expropriado a quem não figurou no polo passivo da desapropriação judicial ou amigável. E ficou demonstrado neste parecer que as pessoas que adquiram as áreas desapropriadas, nos idos de 1989 e 1991, não figuraram no polo passivo da desapropriação e por conseguinte nenhuma indenização perceberam. Assim, em relação a eles descabe a cogitação de retrocessão.
Examinaremos, contudo, a retrocessão regulada no Código Civil.
Dispõe o art. 519 do novo Código Civil reproduzindo mais ou menos o art. 1.150 do antigo Código:
“Art. 519. Se a coisa expropriada para fins de necessidade ou utilidade pública, ou por interesse social, não tiver o destino para que se desapropriou, ou não for utilizada em obras ou serviços públicos, caberá ao expropriado direito de preferência, pelo preço atual da coisa.”
O Código Civil de 1916 dispunha em seu art. 1.150:
“Art. 1.150. A União, o Estado, ou o Município, oferecerá ao ex-proprietário o imóvel desapropriado, pelo preço por que o foi, caso não tenha o destino, para que se desapropriou.”
Como se vê, a iniciativa da devolução pelo poder público expropriante, que estava prescrito no Código anterior desapareceu no estatuto substantivo atual, mesmo porque o Poder Público sempre resiste ao direito do ex-proprietário pela simples razão de que nenhum administrador público deseja confessar o desvio de finalidade. O novo Código Civil conferiu a iniciativa da retrocessão a quem foi desapropriado. Contudo, o exercício desse direito de preferência, apesar de agora referir-se a qualquer bem ou direito, ficou bastante limitado, porque se o bem expropriado for utilizado para implantação de quaisquer obras e serviços públicos, independentemente das hipóteses enumeradas para os casos de utilidade pública, não se cogitará de tredestinação.
Outrossim, o preceito legal em vigor determina a devolução do bem expropriado pelo “preço atual da coisa”. Antes, a devolução ocorria pelo valor da indenização paga que a jurisprudência acabou por determinar a sua atualização pelos índices de correção monetária.
Quer do ponto de vista doutrinário, quer do ponto de vista do direito positivo a retrocessão não é o instituto jurídico adequado para solucionar a questão suscitada na consulta. Descabe cogitação de retrocessão a quem não figurou no polo passivo da desapropriação e, portanto, não recebeu o justo preço referido no texto constitucional.
Mas, o problema criado por culpa das partes precisa ser resolvido atento à necessidade de conferir a função social da cidade e garantir o bem- estar de seus habitantes, por meio da política de desenvolvimento urbano a ser executada pelo Poder Público Municipal (art. 182 da CF).
De um lado, os ocupantes adquiram, antes da desapropriação, diversas áreas por instrumentos particulares, promovendo retalhamento de imóvel rural em porções inferiores ao módulo rural previsto em lei, incorrendo em irregularidade. Essa irregularidade não permitiria o registro do título aquisitivo nem que fosse feito por escritura pública. Daí a inexistência de quaisquer ônus apontados na matrícula nº 03689 do Registro de Imóveis da Comarca de Rio Negro em nome de João Pires Neto (falecido) e s/m Anezia Cavalheiro Pires, que foi pesquisada antes da desapropriação.
A consulente, por sua vez, sabia do fato de que na área de propriedade do Espólio de João Pires Neto, desapropriada amigavelmente por escritura de desapropriação datada de 10-10-1994 a que compareceram a viúva Anézia Cavalheiro Pires e todos os herdeiros, estavam incluídas as áreas alienadas anteriormente (nos anos de 1989 e 1991) a terceiros, por contratos particulares não registrados. Mas, por falta de correta orientação jurídica na época, a Prefeitura entendeu que não era possível a desapropriação parcial e incluiu a totalidade da área, sem, contudo, chamar à escritura de desapropriação esses proprietários sem títulos registrados. Porém, respeitou-se a posse dessas áreas a favor daqueles adquirentes que vêm pagando o IPTU. Esses terceiros adquirentes até receberam da Prefeitura local o alvará de edificação em seus lotes.
A situação é peculiar exigindo-se a busca de uma solução que atenda ao interesse público preponderante, sem implicar sacrifício desnecessário de interesses de particulares envolvidos nessa situação inusitada.
Sem prejuízo da usucapião a ser intentada pelos interessados, a consulente poderá tomar a iniciativa de regularizar as ocupações das áreas desapropriadas mediante a elaboração de um projeto de lei autorizando a regularização de parcelamentos de solos urbanos implantados irregularmente em área pública, concedendo aos proprietários de edificações licenciadas a concessão real de uso, a título gratuito, pelo prazo que estipular, ou, alienando aos proprietários de prédios o respectivo terreno pelo seu justo valor, dispensada a licitação. Nesta última hipótese, a questão concernente ao duplo pagamento do valor do terreno é matéria a ser discutida pelo interessado com os herdeiros e viúva do João Pires Neto que receberam a justa indenização.
A solução prática que melhor atende ao interesse público e soluciona o impasse existente é a concessão real de uso, a título gratuito, mediante lei específica assegurando aos posseiros a disponibilidade econômica do bem. A licitação neste caso é dispensável, tendo em vista o relevante interesse público e social da medida que emerge do exame da situação fática narrada na consulta, salvo exigência legal expressa na Lei Orgânica do Município.
Realmente, regulamentando o art. 183 da CF e privilegiando a função social da propriedade urbana, cuja definição cabe ao Poder Público Municipal foi editada a Medida Provisória nº 2.220, de 4 de setembro de 2001, nos seguintes termos:
“Art. 1º – Aquele que, até 30 de junho de 2001, possuiu como seu, por cinco anos, ininterruptamente e sem oposição, até duzentos e cinquenta metros quadrados de imóvel público situado em área urbana, utilizando-o para sua moradia ou de sua família, tem o direito à concessão de uso especial para fins de moradia em relação ao bem objeto da posse, desde que não seja proprietário ou concessionário, a qualquer título, de outro imóvel urbano ou rural.
§ 1º A concessão de uso especial para fins de moradia será conferida de forma gratuita ao homem ou à mulher, ou a ambos, independentemente do estado civil.
§ 2º O direito de que trata este artigo não será reconhecido ao mesmo concessionário mais de uma vez.
§ 3º Para os efeitos deste artigo, o herdeiro legítimo continua, de pleno direito, na posse de seu antecessor, desde que já resida no imóvel por ocasião da abertura da sucessão.
Art. 2º – Nos imóveis de que trata o art. 1º, com mais de duzentos e cinquenta metros quadrados, que, até 30 de junho de 2001, estavam ocupados por população de baixa renda para sua moradia, por cinco anos, ininterruptamente e sem oposição, onde não for possível identificar os terrenos ocupados por possuidor, a concessão de uso especial para fins de moradia será conferida de forma coletiva, desde que os possuidores não sejam proprietários ou concessionários, a qualquer título, de outro imóvel urbano ou rural.
§ 1º O possuidor pode, para o fim de contar o prazo exigido por este artigo, acrescentar sua posse à de seu antecessor, contanto que ambas sejam contínuas.
§ 2º Na concessão de uso especial de que trata este artigo, será atribuída igual fração ideal de terreno a cada possuidor, independentemente da dimensão do terreno que cada um ocupe, salvo hipótese de acordo escrito entre os ocupantes, estabelecendo frações ideais diferenciadas.
§ 3º A fração ideal atribuída a cada possuidor não poderá ser superior a duzentos e cinquenta metros quadrados.
Art. 3º – Será garantida a opção de exercer os direitos de que tratam os arts. 1º e 2º também aos ocupantes, regularmente inscritos, de imóveis públicos, com até duzentos e cinquenta metros quadrados, da União, dos Estados, do distrito Federal e dos Municípios, que estejam situados em área urbana, na forma do regulamento.
Art. 4º – No caso de a ocupação acarretar risco à vida ou à saúde dos ocupantes, o Poder Público garantirá ao possuidor o exercício do direito de que tratam os arts. 1º e 2º em outro local.
Art. 5º – É facultado ao Poder Público assegurar o exercício do direito de que tratam os arts. 1º e 2º em outro local na hipótese de ocupação de imóvel:
I – de uso comum do povo;
II – destinado a projeto de urbanização;
III – de interesse da defesa nacional, da preservação ambiental e da proteção dos ecossistemas naturais;
IV – reservado à construção de represas e obras congêneres; ou
V – situado em via de comunicação”.
Isto posto, passaremos a responder aos quesitos formulados pela consulente:
1) No caso da desapropriação promovida pela consulente é possível resolver a ocupação existente através de retrocessão administrativa por iniciativa do Município ou dos expropriados ou dos atuais ocupantes, tendo em vista todo o levantamento realizado que comprova que a ocupação existe no local desde data anterior à desapropriação, e que a mesma veio mantendo-se de forma pacífica e sem oposição do poder público há mais de 20 anos?
R: Não, porque os atuais ocupantes, nem seus antecessores não foram partes na desapropriação amigável;
2) É possível o gestor municipal, em processo administrativo devidamente documentado, reconhecer a ocupação pacífica e sem oposição durante todo esse período, e com base nas provas testemunhais, que informam que houve um equívoco na delimitação da área a ser desapropriado, conceder o pedido de retrocessão administrativa?
R: Sim, é possível, mas não para o fim de retrocessão.
3) Quais seriam os riscos para o gestor perante os órgãos de controle (Ministério Público, Tribunal de Contas) se estes entenderem que o ato caracteriza má gestão do patrimônio público?
R: Da exposição feita pela consulente não vejo qualquer ato de improbidade que pudesse ser enquadrado em um dos artigos da Lei nº 8.429/92, pois não se vislumbra enriquecimento ilícito do agente público (art. 9º); lesão ao erário público (art. 10); e ação ou omissão que viole os deveres de honestidade, imparcialidade, legalidade, e lealdade às instituições (art. 11).
4) Sendo possível proceder com a retrocessão, o antigo expropriado deverá restituir o valor indenizado corrigido monetariamente ou deverá ser cobrado o valor atual de venda do imóvel?
R: Se possível fosse, e não o é, o valor para a retrocessão deveria corresponder ao valor atual.
5) Havendo possibilidade de proceder com a retrocessão, a mesma pode ocorrer diretamente aos atuais ocupantes ou deve ser realizada para os antigos proprietários?
R: Prejudicado.
6) Existe outro meio legal para transmitir os imóveis ocupados aos posseiros de boa fé?
R: Como dito no corpo do parecer, cada interessado poderá ingressar com ação de usucapião. Poderá, também, a consulente tomar a iniciativa de projeto de lei específico para concessão real de uso nos moldes da Medida Provisória nº 2.220/2001 transcrita no corpo deste parecer, ou até mesmo para autorizar a alienação.
7) Caso não seja recomendada a realização de retrocessão, o Município poderia realizar a alienação dos imóveis diretamente para os atuais ocupantes dos terrenos?
R: Sim, desde que amparada em lei específica como preconizado no corpo do parecer.
8) A alienação, neste caso, poderia se dar por inexigibilidade de licitação?
R: Sim, em virtude da finalidade específica da alienação.
9) Caso seja necessário procedimento licitatório na modalidade concorrência, haveria possibilidade de ser feita com direito de preferência aos atuais ocupantes dos lotes?
R: Prejudicada.
10) Quanto ao preço de venda (caso seja necessário instaurar licitação), pode ser utilizado o valor venal do cadastro imobiliário (IPTU, ITBI)?
R: Na realidade, a alienação pretendida faz às vezes da retrocessão incabível no caso, como demonstrado. Assim, em princípio deverá observar o valor atual do bem. Porém, devidamente amparada por lei específica poderá a Municipalidade consulente adotar o valor venal para fins de IPTU e ITBI. Não se ignora que dentro da política de inclusão social há legislações de três níveis de governo possibilitando o acesso à habitação mediante financiamento público subsidiado.
Uma alternativa para dispensar o duplo pagamento do preço (anteriormente aos expropriados e agora à Prefeitura) seria a elaboração de projeto legislativo autorizando a regularização de loteamento e construção em área pública, a fim de conceder aos ocupantes da concessão real de uso, a título gratuito, por prazo que vier a ser estabelecido em lei, normalmente, 99 anos. Para o caso sui generis sob consulta, essa concessão real de uso não precisaria se ater exatamente aos termos da Medida Provisória nº 2.220/2011 limitado ao imóvel urbano de até 250 ms2 destinado à moradia do posseiro. Nada impede de a Municipalidade consulente, que concorreu para a situação irregular reinante, estenda a concessão real de uso para as áreas maiores e não edificadas, a fim de que fique regularizado o loteamento existente na área desapropriada e não utilizada pelo Poder Público Municipal (12.042,08 ms2). Esse loteamento regularizado ficaria fazendo parte de outro loteamento para fins habitacionais já implantado pela consulente.
11) O valor a ser pago (corrigido monetariamente ou valor atual de venda), pode ser parcelado pela administração?
R: Sim, desde que amparado em lei específica.
12) O valor pago pelos ocupantes até o momento a título de IPTU pode ser abatido do valor pago pela retrocessão ou venda com direito de preferência?
R: Os ocupantes do imóvel são posseiros desde antes da desapropriação. E na forma do art. 34 do CTN são contribuintes do IPTU por deterem a disponibilidade econômica do imóvel, construindo prédios com autorização da Prefeitura. Como já o dissemos, a melhor opção para o caso é a concessão real de uso.
13) Caso seja afirmativa a resposta da pergunta anterior, os valores pagos a título de IPTU cujo eventual direito a restituição já estejam prescritos, pode ser abatido do valor pago pela retrocessão ou venda com direito de preferência?
R: Prejudicado.
14) Para aqueles lotes onde a municipalidade tenha emitido alvará de construção, é permitida venda com direito de preferência, se não for possível retroceder?
R: Sim, nos termos da resposta dada ao quesito de nº 7.
15) É possível a municipalidade aceitar administrativamente pedido de indenização pelas edificações realizadas sobre estes imóveis, uma vez que foram emitidos alvarás de construção em favor dos ocupantes?
R: Sim, desde que a Prefeitura opte por dar destinação pública, na forma do art. 519 do Código Civil, a essas áreas desapropriadas e ainda não utilizadas para qualquer fim público. Voltamos a repetir, a melhor solução para o caso é a elaboração de lei específica autorizando a concessão real de uso das áreas ocupadas pelos adquirentes por títulos não registrados ou seus sucessores. Dessa forma ficaria regularizado o loteamento existente integrando-se àquele loteamento realizado pela consulente naquela área desapropriada não aproveitada para a implantação do Parque Industrial.
É o meu parecer, s.m.j.
São Paulo, 1º de abril de 2015.
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Kiyoshi Harada
OAB/SP 20.317