O Plenário do STF, por maioria de seis votos a cinco, modulou os efeitos da decisão proferida nos idos de 2021, invalidando o dispositivo de Lei Complementar nº 87/96, que previa a incidência do ICMS na transferência interestadual de um estabelecimento para outro do mesmo contribuinte.
Isso aconteceu no bojo dos embargos declaratórios.
Nas palavras do relator, ministro Edson Fachin: “No cenário de busca de segurança jurídica na tributação e equilíbrio do federalismo fiscal, julgo procedentes os presentes embargos para modular os efeitos da decisão a fim de que tenha eficácia pró futuro a partir do exercício financeiro de 2024.”
Em 2021 o mesmo ministro relator havia julgado improcedente a ADI considerando inconstitucional a tributação de “mero deslocamento entre estabelecimentos do mesmo titular, na mesma unidade federada ou em unidades diferentes, por não ser fato gerador do ICMS, sendo este o entendimento consolidado nesta Corte,guardiã da Constituição, que o aplica há anos até os dias atuais.”
Quanto a não incidência tributária, e não isenção, como se tem dito equivocadamente, o ministro Edson Fachin tem inteira razão.
Agora, modular os efeitos daquela decisão de 2021, em sede embargos declaratórios que ficaram dormitando nos escaninhos do STF até hoje, não é, a nosso ver, contribuir para a segurança jurídica, ao contrário, traz insegurança jurídica como mais adiante veremos.
A partir do instante que o STF, após décadas de vivência do ICMS, interpretando o inciso II, do art. 155 da Constituição, firmou definitivamente o entendimento de que o fato gerador desse imposto não é a movimentação física da mercadoria, mas, a sua circulação jurídica que envolve, necessariamente, mudança de titularidade da mercadoria ou de posse, como a compra e venda, não mais poderia o fisc tributar mer deslocamento físico da mercadoria.
O pronunciamento do intérprete máximo da Constituição no sentido da não incidência do ICMS deveria bastar para que o fisco deixasse de exigir o imposto onde não haja operação mercantil de compra e venda, independentemente, do que disponha a Lei Complementar nº 87/96.
Mas, no Brasil, a proclamação de um princípio não basta. É preciso que a Corte Maior diga, caso a caso, que não há incidência do imposto sem circulação jurídica.
Decretada a não incidência do ICMS na transferência de mercadoria de um estabelecimento para outro do mesmo titular, localizado na mesma unidade da federal, logo o fisco passou a exigir o imposto quando essa transferência ocorre entre estabelecimentos do mesmo titular situados em unidades diferentes da Federação Brasileira. É o que aconteceu em 2021, quando se declarou a inconstitucionalidade do dispositivo da Lei Kandir.
Agora, só falta o fisco questionar o não pagamento do imposto quando a transferência ocorre entre a matriz ou sucursal e o estabelecimento comercial do mesmo titular, ou quando essa transferência ocorre por via fluvial e não por via rodoviária, ou ainda, quando o transporte ocorrer por meio de caminhão de pequeno porte etc.
Contra a falta de inteligência não há solução. Se resolve um caso, ato contínuo cria outros dois casos novos gerando uma cadeia repetitiva cada vez maior.
A modulação levada a efeito é um equívoco. Premia quem não pagou e castiga aquele que pagou, que não poderá pleitear repetição.
Por isso, sustentamos que não deve haver modulação de efeitos na seara do direito tributário.
Atente-se para o exemplo de um imposto manifestamente inconstitucional. Se depois de decorrido uma década o STF declara a sua inconstitucionalidade e modula os efeitos é óbvio que isso representará um estímulo ao mau governante para tributar de forma ilegal e inconstitucional, até mesmo para suprir a necessidade momentânea de caixa.
O certo é que a declaração de inconstitucionalidade surte efeito ex tunc. Norma inconstitucional é como se ela não existisse no mundo do direito. Não é a decisão judicial que torna nula a lei inconstitucional. O Judiciário limita-se a reconhecer a nulidade existente desde o nascedouro.
Logo, se nos idos de 2021, o Plenário do STF declarou a inconstitucionalidade da tributação pelo ICMS sobre a operação de transferência de mercadoria de um estabelecimento para outro do mesmo titular, situados em unidades federativas diferentes, por óbvio, invalidou todas as cobranças feitas pelo fisco antes dessa decisão, porque norma nula não pode ter acarretado a concretização do fato gerador do ICMS.
Do contrário, deveria ter modulado os efeitos naquela ocasião, ou seja, em 2021, com ou sem embargos declaratórios, excepcionando o efeito ex tunc próprio da decisão declaratória de inconstitucionalidade.
Modular os efeitos em função de embargos declaratórios não faz sentido.
Os ministros não precisavam ser alertados da natureza declaratória da decisão que julgue inconstitucional, ou precisam?
Se não modularam o efeito da decisão quando se decretou a inconstitucionalidade, não faz o menor sentido fazê-lo passados dois anos, em sede de embargos declaratórios como se estivesse suprindo uma omissão que não houve.
Como fica a situação dos contribuintes que ingressaram com a repetição de indébito, ou dos que procederam o estorno na escrita fiscal, ou ainda, lançaram o crédito fiscal em seus livros?
São por essas razões que o grande jurista da Bahia, Dr. Antonio Francisco Corte, alega que o Supremo Tribunal Federal é o órgão que maior insegurança jurídica vem propiciando nos dias atuais.
SP, 24-4-2023.
* Texto publicado no Migalhas nº 5.589, de 26-4-2023.