STF põe fim ao imbróglio formado em torno da Difal*

Como se sabe, formou-se um verdadeiro imbróglio em torno da Difal, desde o advento da Lei Complementar nº 190 de 4 de janeiro de 2022 que veio deferir essa Difal ao estado de destino nas operações interestaduais.

Difal significa as diferenças de alíquotas entre a alíquota interna (18%) e a alíquota interestadual que varia de 7% até 12%, ou seja, propicia aos estados de destino a tributação pela alíquota máxima de 11% e pela alíquota mínima de 6%.

Mercadorias destinadas a estados das regiões Norte, Nordeste e Centro-Oeste saem com alíquotas menores para propiciar maior margem de tributação pelos estados menos desenvolvidos da Federação. Na saída dessas regiões para as regiões Sul e Sudeste acontece o contrário: saem com alíquotas maiores deixando menor margem de tributação para os estados destinatários.

Essa questão é regulada pelo inciso VII, do § 2º, do art. 155 da CF em sua redação original:

“VII – em relação às operações e prestações que destinem bens e serviços a consumidor final localizado em outro Estado, adotar-se-á:

a) a alíquota interestadual, quando o destinatário for contribuinte do imposto;

b) a alíquota interna, quando o destinatário não for contribuinte dele;”

Esse inciso VII distinguia nas operações interestaduais o fato de o consumidor final localizado em outro estado ser ou não contribuinte do imposto. Aplicava-se a alíquota interestadual de 7% a 12% conforme o estado de destino, quando o consumidor final localizado em outro estado for contribuinte do ICMS no pressuposto de que haverá operação subsequente tributada e aplicava-se a alíquota interna (18%), quando o consumidor final não for contribuinte do ICMS.

Acontece que sobreveio a EC nº 87/2015 conferindo nova redação ao inciso VII, do § 2º, do art. 155 da CF que ficou assim redigido:

“VII – nas operações e prestações que destinem bens e serviços a consumidor final, contribuinte ou não do imposto, localizado em outro Estado, adotar-se-á a alíquota interestadual e caberá ao Estado de localização do destinatário o imposto correspondente à diferença entre a alíquota interna do Estado destinatário e a alíquota interestadual”.

A EC nº 87/2015 acabou com a distinção prevista na redação original do inciso VII, deferindo a Difal ao estado de destino, independentemente de o consumidor final ser ou não contribuinte do ICMS, a fim de prestigiar sempre o estado de consumo da mercadoria/serviço.

Essa Emenda nº 87/2015 estabeleceu um regime de transição por meio da inserção do art. 99 do ADCT nos seguintes termos:

“Art. 99. Para efeito do disposto no inciso VII do § 2º do art. 155, no caso de operações e prestações que destinem bens e serviços a consumidor final não contribuinte localizado em outro Estado, o imposto correspondente à diferença entre a alíquota interna e a interestadual será partilhado entre os Estados de origem e de destino, na seguinte proporção:

I – para o ano de 2015: 20% (vinte por cento) para o Estado de destino e 80% (oitenta por cento) para o Estado de origem;

II – para o ano de 2016: 40% (quarenta por cento) para o Estado de destino e 60% (sessenta por cento) para o Estado de origem;

III – para o ano de 2017: 60% (sessenta por cento) para o Estado de destino e 40% (quarenta por cento) para o Estado de origem;

IV – para o ano de 2018: 80% (oitenta por cento) para o Estado de destino e 20% (vinte por cento) para o Estado de origem;

V – a partir do ano de 2019: 100% (cem por cento) para o Estado de destino.”

A regulamentação da nova redação conferida ao inciso VII suprarreferido ocorreu por meio do Convênio nº 93/2015 que foi declarado inconstitucional pelo STF, por implicar usurpação de competência privativa de lei complementar.

Realmente, a nova redação conferida ao citado inciso VII implicou alteração do sujeito ativo do imposto no que concerne ao Difal, a ser observado em todo o território nacional, atraindo a competência do legislador nacional (art. 146, III da CF).

Foi nesse cenário que surgiu a Lei Complementar nº 190 de 4-1-2022 conferindo a Difal ao estado de destino, independentemente de o consumidor final localizado em outro estado ser ou não contribuinte do ICMS. Já era assim desde o exercício de 2019 (inciso V, do art. 99 do ADCT).

Para regular a nova redação conferida ao inciso VII, do § 2º do art. 155 da CF bastava apenas dois artigos: um conferindo a Difal ao estado de destino; e outro dispondo sobre a data de vigência de 5, 10, 15 ou 30 dias. No silêncio, a nova lei entraria em vigor 45 dias após a sua publicação, segundo as normas da LINDB.

Mas, o confuso legislador editou nada menos que 41 normas entre artigos, parágrafos, incisos e alíneas e inseriu, ao mesmo tempo, normas dúbias, propositalmente ou não, para confundir a mente dos intérpretes.

A primeira dubiedade reside no § 2º, do art. 4º da LC nº 190/2022 que assim dispõe:

“§ 2º É ainda contribuinte do imposto nas operações ou prestações que destinem mercadorias, bens e serviços a consumidor final domiciliado ou estabelecido em outro Estado, em relação à diferença entre a alíquota interna do Estado de destino e a alíquota interestadual:

I – o destinatário da mercadoria, bem ou serviço, na hipótese de contribuinte do imposto;

II – o remetente da mercadoria ou bem ou o prestador de serviço, na hipótese de o destinatário não ser contribuinte do imposto”.

A expressão “é ainda contribuinte” que inicia a redação do § 2º causa a impressão de que a norma estaria instituindo uma nova hipótese de incidência do ICMS, aumentando a carga tributária do remetente (vendedor) quando, na realidade, isso não ocorre.

A responsabilidade pelo pagamento do imposto pelo vendedor em caso de remessa de mercadoria a outro estado destinado a consumidor final sempre existiu. Por meio de substituição tributária o vendedor recolhe o imposto a favor do estado de destino.

Antes da EC nº 87/2015 o remetente da mercadoria a consumidor final não contribuinte localizado em outro Estado efetuava o pagamento do imposto pela alíquota interna, isto é, 18%. A partir da EC nº 87/2015 a Difal passou a pertencer exclusivamente ao Estado de destino, independentemente de o consumidor final localizado em outro estado ser ou não contribuinte do imposto. Não se vislumbra aí nenhuma relação de direito tributário, mas, apenas a de direito financeiro, de interesse exclusivo dos estados de destino e de origem.

O contribuinte do ICMS, antes e depois da EC nº 87/2015, nunca pagou pela alíquota superior a 18%. Se o imposto é pago neste ou n’outro estado, ou ainda, dividido entre os estados de origem e de destino, como no caso sob comento, não é uma questão que diz respeito ao contribuinte.

A segunda nebulosidade está expressa no art. 3º dessa LC nº 190/2022:

Art. 3º Esta Lei Complementar entra e vigor na data de sua publicação, observado, quanto à produção de efeitos, o disposto na alínea “c” do inciso III do caput do art. 150 da Constituição Federal.

Essa noventena – categoria própria do direito tributário, aplicável apenas nos casos de instituição de tributo ou de sua majoração –, representa um verdadeiro jaboti plantado pelo confuso legislador, pois não se articula com o conjunto de 41 normas editadas. Antes, o jaboti era plantado apenas no projeto de conversão da Medida Provisória. Hoje, essa prática deletéria está se alastrando para todo o processo legislativo, até na elaboração de leis especiais.

Esse astuto jaboti causou estragos na doutrina e na jurisprudência do STF, dividindo as opiniões dos doutos tendo em vista a agravante provocada pelo Executivo que sancionou a Lei Complementar apenas no dia 4 de janeiro de 2022, apesar de o respectivo projeto de lei ter sido aprovado pelo Parlamento na primeira metade da segunda quinzena de dezembro de 2021. Patente a falha da assessoria jurídica do Planalto.

Enfim, cada Poder contribuiu para disseminar a confusão em um movimento que até parece orquestrado.

A confusão foi de tal ordem que inaugurou-se a inusitada tese da aplicação do princípio da anterioridade implícito a ser aplicado sem que houvesse instituição de tributo ou sua majoração.

E essa doutrina divulgada com constância na mídia repercutiu no STF.

O Ministro Alexandre de Morais foi o único que pronunciou a inconstitucionalidade desse estranho art. 3º, determinando a aplicação imediata da LC nº 190/2022, porque inocorreram a instituição de novo imposto, nem aumento do imposto existente (ADIs nºs 7066, 7070 e 7078). O insigne Ministro bem distinguiu as relações de direito financeiro das relações de direito tributário que no caso sob comento não existem. É irrelevante o legislador complementar tenha prescrito a aplicação da noventena onde a Constituição não a prevê. Como limitação ao poder de tributar, a noventena, bem como, o princípio da anterioridade devem ter expressa previsão constitucional, sob pena de inibir a competência tributária dos entes políticos por meio de normas infraconstitucionais. É pacífico na doutrina que a competência tributária tem sede exclusivamente na Constituição, ao contrário da isenção que atua no plano infraconstitucional

O Ministro Dias Tóffoli, por sua vez, acolheu a noventena, sob o argumento de que cabe à lei complementar, assim como, à lei ordinária fixar o prazo de vigência da lei.

Em tese assiste razão ao ilustre Ministro, tanto é que a LINDB prescreve que salvo disposição em contrário a lei entra e vigor 45 dias após a sua publicação. O que não pode é o legislador invocar a noventena referida na alínea “c” do inciso III do caput do art. 150 da CF, sem que tenha havido instituição de novo tributo ou majoração daquele existente.

Abriu a divergência o Ministro Edson Fachin sustentando que o “novo Difal” deve obedecer ao princípio da anterioridade implicitamente contido no princípio da noventena, igualmente, aplicável ao caso sub judice. Seu voto foi seguido pelos Ministros André Mendonça, Cármen Lúcia, Ricardo Lewandowski e Rosa Weber. O Ministro Gilmar Mendes pediu vista do processo e posteriormente votou acompanhando a tese do Ministro Dias Tóffoli, a fim de postergar a cobrança da Difal para a partir de abril de 2022.

É impressionante como um jaboti inserido pelo infeliz legislador causou tantas divergências de interpretação de normas de direito financeiro, que nada têm a ver com o direito tributário.

Repita-se, a LC nº 190/2022 limita-se a regular as relações jurídicas entre os estados de origem e de destino, como acentuado pelo Ministro Relator, Ministro Alexandre de Moraes.

Não cabe falar em nova relação jurídica entre contribuinte e o estado de destino como sustentado por parte da doutrina e parte dos julgadores, mas, sim em relação jurídica existente entre o contribuinte e o fisco estadual, que sempre existiu. O relacionamento do contribuinte com o fisco estadual abrange, obviamente, sua relação tanto com o estado de origem, quanto com o estado de destino. Não cabe falar em nova relação jurídica do contribuinte com o estado de destino. Ao se admitir como correto semelhante raciocínio se um dos estados sofrer um desmembramento estaríamos diante de uma nova relação jurídica contribuinte/novo estado, a ensejar a aplicação do princípio da anterioridade e da noventena.

O estrago feito pelo jaboti plantado pelo legislador nacional foi terrível. Ensejou o surgimento de três diferentes teses no STF; a) aplicação imediata da LC 190/22; b) aplicação da LC nº 190/22 após a noventena; e c) aplicação da LC 190/22 somente a partir de 1º de janeiro de 2023 (tese majoritária).

A tese majoritária inaugurou nova doutrina do direito tributário: a existência de princípio constitucional implícito, o da anterioridade, que não encontra eco na boa doutrina tributária. Exceção ao poder de tributar deve ser expressa. Isso me parece elementar, com a devida vênia dos estudiosos que pensam o contrário.

Em meio a esse cipoal de confusões a Ministra Rosa Weber pediu destaque fazendo com que o julgamento virtual voltasse à estaca zero.

Fez bem a Ministra Presidente da Corte Suprema. Perante o Plenário físico será possível debater melhor a questão e dirimir as contradições, expurgando os equívocos decorrentes da confusão entre normas de direito financeiro e normas de direito tributário que no caso sob exame não existem.

Com a devida vênia não cabe falar em nova relação jurídica entre o contribuinte e o estado destinatário, pois, o estado destinatário é o mesmo ente político titular da competência impositiva do ICMS. Diferente a hipótese se a lei complementar sob exame tivesse determinado o pagamento do ICMS ao Município ou à União só para argumentar. Aí caberia falar em nova relação jurídica entre o contribuinte e novo destinatário do imposto.

No Plenário físico, onde cada Ministro tem a oportunidade de acompanhar os argumentos dos demais Ministros e estabelecer debates produtivos a tendência pela aplicação do princípio implícito da anterioridade foi revertida.

De fato, o STF, por unanimidade de votos, julgou improcedente a ação direta, reconhecendo a constitucionalidade da cláusula de vigência prevista no art. 3º da Lei Complementar 190/22, no que estabeleceu que a lei complementar passasse a produzir efeitos noventa dias da data de sua publicação, nos termos do voto do Relator (ADI nº 7078 e ADI nº 7070 ambos sob a relatoria do Ministro Alexandre de Moraes). Em relação à ADI nº 7066 a decisão no mesmo sentido foi tomada por maioria de votos.

O Plenário físico desfez a terrível confusão que estava se desenhando no julgamento virtual, resolvendo o imbróglio que se formou em torno desse assunto, confundindo normas de direito financeiro com normas de direito tributário.

Uma vez mais a Suprema Corte prestou relevante serviço à nação dando correta interpretação a textos legais obscuros, dúbios e contraditórios, analisando a questão à luz do ordenamento jurídico global..

Em arremate, o fato de a Lei Complementar nº 190/2022 prescrever o pagamento da Difal no estado de destino não implica nova hipótese de incidência do ICMS, nem aumento da carga tributária a justificar a aplicação do princípio da anterioridade. A relação fisco-contribuinte continuou sendo a mesma: de um lado, a Fazenda representada pelos estados da federação e, e outro lado o contribuinte que sempre se relacionou com os estados de origem e de destino. Fomos o primeiro autor a se manifestar pela inaplicação do princípio da anterioridade, por inexistir relação jurídica de direito tributário e, por isso, sofremos críticas azedadas e injustas de alguns profissionais apaixonados pela tese oposta e incapazes de respeitar opiniões em contrário.

SP, 2-1-2024.

* Texto publicado no Portal Migalhas, edição nº 5.758 de 2-1-2024.

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