Tutela antecipada e suspensão da exigibilidade do crédito tributário

A Lei Complementar n. 104 de 19-1-2001 acrescentou a tutela antecipada no inciso V, do art. 151 do CTN que cuida das hipóteses de suspensão da exigibilidade do crédito tributário. Em sua redação original o referido inciso V somente fazia referência à medida liminar concedida em mandado de segurança mesmo porque à época do advento do Código Tributário Nacional, em 25 de outubro de 1966, não existia essa figura processual introduzida pelo art. 273 do Código de Processo Civil de 1973.

Advirta-se, no entanto, que essa inclusão não tem um sentido inovador como pode parecer à primeira vista. Não se trata de nova hipótese de suspensão da exigibilidade do crédito tributário. Já estava abrangida pela hipótese de concessão de liminar em mandado de segurança.

De fato, a antecipação da tutela pretendida no pedido inicial surte o mesmo efeito de uma liminar em mandado de segurança. Se concedida a tutela antecipada nos autos da ação anulatória do crédito tributário a sua exigibilidade ficará ipso facto suspensa. O fisco, sob pena de cometer crime de desobediência, não poderá promover a cobrança forçada daquele crédito tributário. A norma legal não deve ser interpretada pelo nomen iures dado, mas pela identidade do resultado que dela emana, ou seja, pela situação fática idêntica que a liminar em mandado de segurança ou a tutela antecipada em ação ordinária provoca.

O aplicador da lei deve promover uma interpretação extensiva do texto legal buscando a norma aplicável à mesma situação de fato. E aqui é oportuno distinguir a integração da legislação, com a interpretação analógica. Transcrevemos trecho que escrevemos com apoio em Ruy Barbosa Nogueira que bem distingue as duas coisas: “Fala-se muito em interpretação analógica, porém, como assinala Ruy Barbosa Nogueira, analogia não é interpretação, mas integração. Explica o renomado autor que analogia não se confunde com a interpretação extensiva em que a situação de fato é clara, mas a de direito é obscura ou incompleta, hipótese em que cabe ao aplicador, através da metodologia de interpretação, fazer que o texto alcance a situação de fato. Na aplicação analógica, prossegue o mestre, ‘a situação de direito é clara, mas a de fato obscura, ou melhor, o texto descreve com clareza uma determinada situação de fato e o intérprete pretende aplicar essa descrição a outra situação de fato, por ser concretamente análoga à descrita no texto. Portanto, a aplicação por analogia implica a apreciação do estado de fato legal e comparação ou analogia deste com outro estado de fato concreto.’” [1]

Impõe-se a conclusão de que a tutela antecipada, independentemente de sua expressa previsão legal, implica suspensão da exigibilidade do crédito tributário sob o efeito daquela medida judicial. A Lei Complementar n. 104/2001, nesse particular, veio apenas explicitar o que estava implícito. Simplesmente incogitável o prosseguimento de cobrança de crédito tributário alcançado pela concessão de tutela antecipada no bojo de uma ação anulatória de lançamento tributário.

Contudo, o STJ em recente julgamento cujo acórdão ainda pende de publicação decidiu no Resp n. 1391086/ES, Rel. Min. Benedito Gonçalves, em sentido contrário mantendo, por unanimidade, o Acórdão recorrido, originário do TRF da 2ª Região.

O caso versou sobre a concessão de tutela antecipada na ação ordinária para que a empresa-autora pudesse compensar os valores do PIS recolhidos indevidamente, com aqueles realmente devidos a título de PIS, COFINS e CSLL. Depois de operada a compensação lastreada em decisão judicial a ação veio a ser julgada improcedente. Em vista disso a Fazenda promoveu a cobrança dos valores compensados e a empresa-autora argüiu a prescrição. O TRF2 ao apreciar a questão sustentou que a compensação não é causa de suspensão da exigibilidade do crédito tributário constante no rol do art. 151 do CTN. Acrescentou, outrossim, que na data em que foi deferida a liminar autorizando a compensação ainda não vigorava a Lei Complementar n. 104/2001, que introduziu o inciso V, do art. 151, que determina a suspensão da exigibilidade do crédito tributário pela concessão de tutela antecipada, concluindo-se, por essa razão, pela não suspensão do prazo prescricional. Esses argumentos foram totalmente encampados pela Primeira Turma do Superior Tribunal de Justiça, por unanimidade de votos.

Os equívocos são vários e manifestos, conforme adiante se verá.

Preliminarmente, nunca concordamos com a tese da suspensão concomitante da exigibilidade do crédito tributário e da prescrição que conduz à eternização do processo administrativo tributário. Constituído o crédito tributário pelo lançamento regularmente notificado ao sujeito passivo inicia-se, ipso facto, a fluência do prazo prescricional que não se suspende, nem se interrompe pela impugnação ou recurso. Aliás, o CTN não reconhece a figura da suspensão da prescrição, mas apenas a da sua interrupção pelo protesto judicial (inciso II, do parágrafo único, do art. 174). Apontamos seis razões da fluência do prazo prescricional que tem início com a notificação do lançamento.[2] Mas, não é objetivo deste estudo a abordagem dessa matéria.

O Acórdão sob exame sustentou que a compensação não é causa de suspensão de exigibilidade do crédito tributário. E nem poderia ser. Por esse instituto de direito civil, quando as partes forem ao mesmo tempo devedora e credora extinguem-se as obrigações até onde se compensarem. É o que dispõe com lapidar clareza o art. 368 do Código Civil. Por isso, o Código Tributário Nacional elencou a compensação entre as modalidades de extinção do crédito tributário (art. 156, II). Extinto o crédito pela compensação não há que se cogitar de sua suspensão. Este é o primeiro equívoco do Acórdão sob exame.

O segundo equívoco reside no fato de excluir a tutela antecipada como meio de suspensão da exigibilidade do crédito tributário mediante interpretação literal do inciso V, do art. 151 do CTN em sua redação original. Considerou que a inclusão da tutela antecipada nesse inciso legal pela Lei Complementar n. 104/2001 veio alargar as hipóteses de suspensão, pelo que, somente a partir de então poderia conferir a inexequibilidade do crédito tributário alcançado pela tutela antecipada. Lá faltou noções de direito civil, aqui faltou noções de hermenêutica. Já verificamos que mediante metodologia de interpretação extensiva, ou seja, da integração da legislação, aplicável é o inciso V em referência, independentemente da redação acrescida pela LC n. 104/2001. A situação de fato é clara e é igual, tanto para a hipótese de liminar em mandado de segurança, como no caso de tutela antecipada em ação ordinária de anulação do lançamento. Para situação fática igual aplica-se o mesmo preceito legal.

O terceiro equívoco cometido pelo V. Acórdão diz respeito à consumação do prazo prescricional de cobrança do crédito tributário, porque não houve suspensão da exigibilidade a implicar concomitante suspensão da prescrição.

Ora, se o crédito tributário, no caso, estava extinto por força da compensação operada com base em decisão judicial, pergunta-se, como poderia a Fazenda promover a sua cobrança? O princípio da razoabilidade que se coloca como limite à ação do próprio legislador se opõe à pretensão de cobrar um crédito extinto.

O pior é que não cabe recurso extraordinário para remediar os equívocos do julgado comentado por conta de empecilhos processuais e regimentais.

No caso sob exame, com a reversão da tutela antecipada houve restabelecimento do crédito tributário passando, a partir de então, a fluir novo prazo prescricional para sua cobrança. Na hipótese, a reversão era perfeitamente possível, tanto é que o parágrafo 2º, do art. 273 do CPC veda a “antecipação da tutela quando houver perigo de irreversibilidade do provimento antecipado.” Podem até discordar desta conclusão, mas não podem concordar com as conclusões do V. acórdão comentado.

A cada dia que passa vai-se aumentando a insegurança jurídica por conta da jurisprudência de nossos tribunais conflitantes entre si e com a ordem jurídica vigente. A jurisprudência, na atualidade, não está mais cumprindo sua função de pacificar as discussões e trazer segurança e estabilidade às relações jurídicas. Ao contrário, ela tem sido a grande causa da instabilidade e da inquietação dos operadores do direito surpreendidos a cada dia que passa com decisões inovadoras divorciadas da ordem jurídica positivada.

Nenhum ramo do direito pode ser estudado isoladamente sem conexão com os demais ramos da ciência jurídica. Por isso, sempre enfatizamos a necessidade de o especialista em direito tributário conhecer em profundidade o direito comum. Basta o exame da discriminação constitucional de rendas e o disposto no art. 110 do CTN para se ter uma idéia da suprema importância do direito comum na seara do direito tributário. Enquanto não se considerar a ordem jurídica global na aplicação de preceitos normativos, com a observância do princípio da hierarquia vertical das leis as confusões, as contradições e discussões díspares continuarão comprometendo a segurança do direito.

[1] Cf. nosso Direito financeiro e tributário. 23. Ed. São Paulo: Atlas, 2014, p. 534-535.

[2] Conforme nossa ob. cit., p. 584-585.

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