Acaba de ser sancionada a Lei Complementar nº 151, de 5 de agosto de 2015, que possibilita a utilização de depósitos judiciais para promover o pagamento de precatórios. Segundo o seu art. 3º:
a) Os depósitos judiciais e administrativos em dinheiro referentes a processos tributários ou não tributários, nos quais o Estado, Distrito Federal e Municípios sejam partes, deverão ser efetuados em instituições financeiras oficial federal, estadual ou distrital;
b) A instituição financeira oficial transferirá para a conta única do Tesouro do Estado, do Distrito Federal ou do Município 70% (setenta por cento) do valor atualizado dos depósitos referentes a processos judiciais e administrativos;
c) Para implementação do disposto na letra b deverá ser instituído o fundo de reserva destinado a garantir a restituição da parcela transferida ao Tesouro (§1º).
d) O montante de depósitos judiciais e administrativos não repassado ao Tesouro constituirá o fundo de reserva a que alude a letra antecedente, cujo saldo não poderá ser inferior a 30% (trinta por cento) do total dos depósitos referidos na letra a (§3º);
e) Os valores recolhidos ao fundo de reserva terão remuneração equivalente a taxa Selic para títulos federais.
Nos termos do art. 7º os recursos repassados (70% dos valores depositados) serão aplicados exclusivamente no pagamento de:
I – precatórios judiciais de qualquer natureza;
II – dívida pública fundada, caso a lei orçamentária do ente federativo preveja dotações suficientes para pagamento da totalidade dos precatórios judiciais exigíveis no exercício e não remanesçam precatórios não pagos referentes aos exercícios anteriores;
III – despesas de capital, caso a lei orçamentária do ente federativo preveja dotações suficientes para o pagamento da totalidade dos precatórios judiciais exigíveis no exercício, não remanesçam precatórios não pagos referentes aos exercícios anteriores e o ente federado não conte com compromissos classificados como dívida pública fundada;
IV – recomposição dos fluxos de pagamento e do equilíbrio atuaril dos fundos de previdência referentes aos regimes próprios de cada ente federado, nas mesmas hipóteses do inciso III.
O § 1º faculta, ainda, ao ente federado, em qualquer hipótese, a utilização de 10% dos recursos que lhes forem transferidos para constituição do Fundo Garantidor das PPPs.
Já vimos esse filme no passado, quando Estados e Municípios editaram leis próprias para utilização de depósitos judiciais até o limite de 70% para liquidação de precatórios e despesas de capital.
Nenhum precatório foi pago por conta da utilização de recursos pertencentes à parte no processo que promoveu o depósito na condição de autor ou de réu. Repete-se o mesmo filme só que, agora, com base em lei complementar de aplicação nos âmbitos dos Estados e Municípios.
Essa lei não contribuirá em nada para acelerar o pagamento dos precatórios sendo uma forma astuta de aumentar o limite de endividamento das entidades políticas, contornando as disposições da Lei de Responsabilidade Fiscal.
Nota-se, de imediato, que exclusividade de aplicação dos 70% dos recursos transferidos ao Tesouro de que trata o caput do art. 7º para pagamento de precatórios está desmentida pelo seu § 1º, que retira 10% desses recursos para compor o Fundo Garantidor das PPPs. Exclusividade não exclusiva, ou exclusividade relativa?
As destinações dos incisos II e III, do art. 7º, por sua vez, fazem referência ao implemento de uma condição que se sabe de antemão que não ocorrerá, pois por força da EC nº 62/2009 que ainda vigora apesar da declaração de sua inconstitucionalidade, o dispositivo constitucional que determina a inclusão do valor do precatório no orçamento do exercício seguinte está suspenso. Tecnicamente não há mais a figura do precatório descumprido ou em mora. Isso abrirá caminho para pagamentos da dívida fundada e das despesas de capital em detrimento da quitação dos precatórios impagos.
Fundo Garantidor de Reserva a que alude o § 1º, do art. 3º é constituído pelo remanescente dos recursos não transferidos (30% dos depósitos existentes) , ou seja, é constituído por recursos preexistentes e não pertencentes ao ente político que se apropria dos 70%. O § 3º contém uma declaração acaciana ao dispor que esse Fundo Garantidor não poderá ser inferior a 30%. Ora, se o ente político só pode transferir ao Tesouro apenas 70% dos depósitos existentes parece óbvio que restarão 30%.
O art. 4º condiciona o recebimento das transferências (70% dos depósitos judiciais) à apresentação pelo chefe do Executivo de um termo de compromisso. Esse termo prevê, dentre outros, o compromisso de manter o fundo de reserva; a destinação automática ao referido fundo do valor correspondente a 30% dos depósitos (incisos I e II). Em outras palavras, o chefe do Executivo deve firmar o compromisso de cumprir a lei, como se a lei pudesse ser descumprida na ausência desse compromisso de cumpri-la. O inciso III, por sua vez , alude ao compromisso de autorizar a movimentação do fundo de reserva para os fins do disposto no art. 5º que foi vetado, isto é, exige-se o compromisso de cumprir o que dispõe o artigo vetado.
Salta aos olhos que esse novo instrumento normativo em nada contribuirá para diminuir o montante dos precatórios acumulados já objetos de uma nova moratória. Essa lei servira exclusivamente para aumentar o grau de endividamento dos Estados e Municípios ao autorizar o uso de dinheiro que pertence à parte no processo, além de provocar dificuldades imensas à parte litigante vencedora da demanda contra a Fazenda que não conseguirá levantar o montante depositado por falta de recursos financeiros que ele depositou. Só falta a parte depositante e vitoriosa na demanda ter que se submeter à via do precatório para poder ver restituído o valor depositado a título de caução ou para suspender a exigibilidade do crédito tributário no curso da demanda.
Porém, a lei complementar sob comento tem a virtude de traçar normas gerais em matéria de direito financeiro (§ 1º, do art. 24 da CF) para impedir o uso de dinheiro depositado em juízo pela parte que litiga contra a Fazenda ao sabor da vontade de cada governante, ao prescrever em nível de norma geral a sua utilização para priorizar o pagamento de precatórios, isto é, diminuir o montante da dívida pública do ente federado.
Dentro desse enfoque a recente lei do Estado de Minas Gerais que permite a utilização de 75% dos recursos depositados em juízo para pagamento da folha dos servidores públicos é inconstitucional. Lançar mão de recursos que não lhe pertencem para financiar a folha revela total incapacidade do governo de gerir os interesses do Estado. No setor privado costuma-se dizer que quando uma empresa toma dinheiro no mercado para financiar a folha representa o início de seu fim irreversível.
SP, 17-8-15.
* Jurista, com 30 obras publicadas. Acadêmico, Titular da cadeira nº 20 (Ruy Barbosa Nogueira) da Academia Paulista de Letras Jurídicas. Acadêmico, Titular da cadeira nº 7 (Bernardo Ribeiro de Moraes) da Academia Brasileira de Direito Tributário. Acadêmico, Titular da cadeira nº 59 (Antonio de Sampaio Dória) da Academia Paulista de Direito. Sócio fundador do escritório Harada Advogados Associados. Ex-Procurador Chefe da Consultoria Jurídica do Município de São Paulo.