O desvalor da injustiça na repetição de valores alimentares pagos a agentes públicos por força de decisões judiciais provisórias
Antes de detalhar ao leitor a problematização objeto deste articulado, é imperativo que o alertemos para o desvalor que ela encerra: a injustiça.
Voltaire advertira já que a justiça é frequentemente injusta, por muitas e pavorosas maneiras, convertendo-se o fanático em tirano sempre que detenha o poder de fazer o mal (O preço da justiça. 2. ed. São Paulo: Martins Fontes, 2006, p. 4). Eduardo Couture, em seus lapidares mandamentos destinados ao exercício da advocacia, sublinhou o dever do causídico de lutar pelo direito, suplantando-o, porém, nas hipóteses em que conflitar com a justiça, precisamente porquanto esta se situa na escala de valores e configura um fim em si, sendo o direito considerado um meio para atingi-la (Os mandamentos do advogado. Porto Alegre: Fabris, 1979, p. 39-40). Em arremate, depois de afirmar ser a justiça “a virtude primeira das instituições sociais, assim como a verdade o é dos sistemas de pensamento”, John Rawls observa que, “por mais eficientes e bem organizadas que sejam [as leis e as instituições]”, “devem ser reformuladas ou abolidas se forem injustas” (Uma teoria da justiça. 3. ed. São Paulo: Martins Fontes, 2008, p. 4).
Isto posto, registramos que o desvalor da injustiça se acha presente nas pretensões que as pessoas jurídicas estatais deduzem em juízo, assim como nas decisões que as acolhem, relacionadas à cobrança ou repetição de valores alimentares pagos a agentes públicos por força de decisões judiciais provisórias.
Ano após ano, o Poder Judiciário é atulhado com a propositura de ações que versam sobre o reajustamento ou manutenção de proventos e benefícios de agentes públicos ou dependentes seus, decorrentes de muitas e sucessivas alterações legislativas no regime jurídico aplicável a tais pessoas. Na maioria dos casos, desde que atendidos os requisitos legais, o provimento final desejado é reclamado de maneira antecipada, por meio de tutelas judiciais de caráter provisório. Tamanha é a repercussão de tais pretensões que a vigente lei federal aplicável ao mandado de segurança consignou, expressamente (art. 7º, §2º), ser vedada a concessão de medida liminar que tenha por objeto a concessão de aumento, extensão de vantagens ou pagamento de qualquer natureza a agentes públicos (a flagrante inconstitucionalidade da previsão não escapou ao controle exercido pelo Supremo Tribunal Federal, que a declarou, em decisão recente proferida na ADI n.º 4296).
Pois bem. Casos há em que a devolução de valores indevidamente pagos pelo Estado deve mesmo se verificar, como aqueles em que o agente público tenha agido de má-fé e aqueloutros resultantes de erros de fato cometidos pela Administração, como cálculos que resultem em valor superior de vantagem efetivamente devida ou cadastramento errôneo de vantagem a que o agente não faça jus.
Por outro lado, o reajustamento ou a manutenção de vantagens pecuniárias determinados por decisão judicial devem conduzir a conclusão diametralmente oposta, por variadas razões.
Em primeiro lugar, o provimento jurisdicional que defere tal pretensão confere o status de justo título ao recebimento. Trata-se de uma chancela de legitimidade, uma estampa de autoridade estatal que, imperativa em seu cumprimento, confirma a independência e harmonia na relação entre os Poderes Executivo e Judiciário.
Em segundo lugar, pouca ou nenhuma importância há quanto ao fato de a decisão concessiva de tal pagamento ostentar caráter provisório, assumindo a forma de uma liminar ou de uma tutela antecipada.
Tornou-se praticamente mecânica a alegação de que valores recebidos por força de decisões judiciais provisórias devem ser, em todo e qualquer caso, restituídos ao erário quando o provimento final for desfavorável ao agente público. Aqueles que sustentam que o conhecimento da precariedade ou reversibilidade da decisão, pelo postulante, é fundamento por si só suficiente para autorizar a devolução de valores recebidos no curso da ação judicial desconhecem ou negligenciam que a precariedade é um traço comum e ínsito a todas as decisões judiciais. Em maior ou menor grau, todos os provimentos jurisdicionais se revestem de precariedade até que sobrevenha a autoridade da coisa julgada, que torna imutável e indiscutível a decisão não mais sujeita a recurso. O artigo 203 do CPC, por exemplo, distingue a sentença das decisões interlocutórias com fulcro em seu conteúdo (artigos 485 e 487) e função (extintiva da fase de conhecimento do procedimento comum ou extintiva da execução). Não há distinção quanto à essência de tais pronunciamentos, uma vez que todos possuem conteúdo decisório (as decisões interlocutórias podem abranger, inclusive, o mérito do processo), são dotados de eficácia e emanam de autoridade estatal investida de jurisdição. Em última análise, até mesmo a decisão transitada em julgado pode ser desconstituída por meio da competente ação rescisória. Assim sendo, a afirmada precariedade não se revela excludente da boa-fé do agente público que reclama a tutela provisória, tampouco da natureza alimentar dos valores que compõem a sua remuneração.
Estes aspectos (boa-fé e natureza alimentar das parcelas) assomam, inclusive, enquanto mais uma razão impeditiva da devolução de valores pagos no curso da ação por força de decisão judicial provisória, porquanto relacionados à subsistência do agente e de seus familiares.
A título de exemplo, tivemos oportunidade de atuar na defesa de servidor que, tendo recebido vantagem remuneratória por mais de quatorze anos, viu-se dela privado em razão de supressão legislativa que a considerou indevida. Tal supressão determinou a redução de seus vencimentos em nada menos que 85% (oitenta e cinco por cento). É bastante evidente que uma redução assim impactante comprometa a subsistência do indivíduo e, por conseguinte, o elemento nuclear da sua dignidade enquanto pessoa humana. Pergunta-se: quem, em semelhante hipótese, não se socorreria do Poder Judiciário para controle do ato supressivo e manutenção do pagamento até o desfecho da lide?
No caso em comento, o demandante obteve a concessão de medida liminar perante Tribunal de Justiça Estadual e Superior Tribunal de Justiça. Houve a efetiva demonstração da aparência do direito e o convencimento de desembargadores e ministros sobre a necessidade e justeza do provimento provisório, mantendo-se o pagamento da verba por longos doze anos, até que decisão final houvesse por bem cassar a liminar dantes deferida, rendendo ensejo à sanha pública de reclamar a devolução dos valores pagos durante o curso da demanda.
O transcurso de um lapso temporal tão dilargado atrai, em semelhantes casos, a aplicação da denominada teoria do fato consumado, notadamente quando a restauração de uma suposta legalidade estrita é de moldes a ocasionar dano individual muitas vezes maior que a manutenção da situação consolidada pelo decurso do tempo. A supressão da paga, determinada por decisão definitiva, é já medida suficiente e adequada ao pretendido restauro da legalidade. Retroagir os efeitos da cassação de decisão judicial provisória, para o fim de impingir ao agente o ressarcimento dos valores recebidos no curso da ação, reveste-se de flagrante desproporcionalidade, penalizando-o por ter deduzido em juízo pretensão cuja probabilidade de acolhimento foi reconhecida por autoridade estatal investida de jurisdição. Ademais, a considerar a inquestionável natureza alimentar das parcelas recebidas no curso da ação judicial, a pretensão de ressarcimento (de montante muitas vezes impagável) em muito se assemelha ao mito de Prometeu que, diariamente, tinha o fígado espicaçado por uma águia, como castigo por ter roubado o fogo dos deuses para conferi-lo aos homens (especialmente no caso do Poder Judiciário, causo-nos espécie que conceda a pretensão, reverta o provimento e ainda condene o postulante por tê-lo convencido quanto à aparência do direito alegado, como se a justiça se restabelecesse com essa espécie de desforra ou castigo).
Por fim, deve-se considerar que, para além da comprovação do dano causado, a responsabilidade civil do agente público perante a Administração depende da comprovação de ter ele agido com culpa civil, ou seja, por meio de comportamento doloso ou culposo em sentido estrito. Somente assim se tem por caracterizados os elementos que compõem o dever de ressarcir.
Na hipótese de que se cuida, beira o teratológico cogitar a existência de dolo ou culpa em sentido estrito por parte daquele que deduziu pretensão em juízo, formulou requerimento de concessão liminar/antecipada dos efeitos do provimento jurisdicional desejado e viu convencidos os julgadores quanto à plausibilidade de suas alegações. Não há imprudência, antes discernimento em socorrer-se o jurisdicionado do Estado-juiz; não há negligência, antes desvelo e escrúpulo quando se indica ao julgador a fumaça do direito; não há imperícia, antes engenho no mais pronto restabelecimento do direito que se afigura violado.
Àqueles que argumentam ser igualmente injusta a ausência de ressarcimento ao Estado dos valores pagos a agente público por força de decisão judicial provisória posteriormente modificada/cassada, respondemos, em último esforço e com apoio na teoria da justiça de John Rawls, que uma injustiça é tolerável (e somente é tolerável) quando necessária para evitar uma injustiça ainda maior.
Especialista em Direito Constitucional pela PUC/SP